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“Só vamos inovar e avançar se desenvolvermos as lideranças dentro do serviço público”
Natália Teles da Mota, destaque da categoria Gestão de Pessoas

Natália Teles da Mota, Gestão de Pessoas (2020)

Conheça a vencedora Natália Teles, destaque na categoria Gestão de Pessoas, que criou, em 2016, a Escola Virtual.Gov. A plataforma reúne diversos cursos gratuitos voltados para o desenvolvimento de servidores públicos e da sociedade no geral. A centralização do conteúdo promoveu uma economia em escala, que beneficia instituições e cidadãos. O projeto virou referência no país, ganhou parcerias internacionais e hoje atende mais de dois milhões de inscritos. A trajetória de Teles não foi linear, mas ela encontrou na gestão de pessoas a oportunidade de realizar um sonho antigo: trabalhar com educação.

Natural de Brasília, durante toda infância e adolescência Teles quis ser professora da Educação Infantil, mas a carreira era vista com forte estigma pelos pais. Durante o terceiro ano do colégio, prestou vestibular para o curso de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB), a fim de testar seus conhecimentos – já que o curso era um dos mais concorridos na época, atrás somente de Direito e Medicina. Com a aprovação precoce, fez uma prova para conseguir o diploma do Ensino Médio e ingressar na universidade. Na metade da graduação, Teles percebeu que não tinha vocação para o curso e não seria feliz ali. Como fazer Pedagogia era inaceitável para os pais, prestou novamente o vestibular e ingressou na carreira de Psicologia. Viu nela a brecha que precisava para estar mais próxima do seu sonho e voltou todo o curso para a área da educação.

Passou a maior parte da graduação conciliando os estudos com trabalho, até ir morar nos Estados Unidos por 6 meses durante um período de greve da universidade. Quando retornou, fez concurso para o setor de Tecnologia da Informação da Caixa Econômica Federal. Foi aprovada e trabalhou no turno da madrugada até conseguir terminar a graduação. Durante cinco anos, desenvolveu diferentes habilidades em seu trabalho no banco, mas sentia que ainda não estava realizada. Em busca de se aproximar da educação, prestou concurso para a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e ingressou, em 2010, na instituição. A formação em Psicologia, aliada à experiência em Tecnologia da Informação, fez da sua trajetória singular. Casou duas competências que não costumam andar juntas e, em dois anos, tornou-se coordenadora geral.

Em 2015, no auge da carreira, Teles descobriu que estava grávida e, na mesma semana, recebeu a notícia de que a mãe tinha sido diagnosticada com câncer. Ela enxerga na gravidez um presente para a mãe, já que seu filho foi o único neto que ela pôde conhecer. Em fevereiro de 2016, seu bebê nasceu e, seis meses depois, sua mãe foi internada em estado terminal. Com a perda e um filho recém-nascido, ela se envolveu ao máximo no trabalho. Foi assim que começou a empreitada da Escola Virtual.Gov.

Natália assumiu a liderança do projeto e chefiou uma equipe com mais de quarenta pessoas para apoiá-la nesta missão. Aproximou a Universidade de Brasília, onde se formou, da Enap por meio da inclusão de estudantes de diferentes cursos como estagiários e pesquisadores da plataforma. Buscou trazer a diversidade para o grupo de trabalho como forma de obter um resultado mais completo e inovador. Não demorou para que Teles transformasse o modo como as pessoas olhavam para o próprio ofício e abraçassem a causa. A partir de muitas mãos, conseguiu unir o amor pela educação com a experiência em tecnologia e dar vida ao projeto.

Hoje, a Escola Virtual.Gov oferece cursos para servidores públicos de todo o Brasil, antes espalhados em diferentes plataformas. O projeto, além de centralizar dados de diferentes escolas do governo e facilitar o trabalho de muitas instituições, trouxe economia para os cofres públicos. Com a maior parte do conteúdo aberto para qualquer cidadão, o programa conquista cada vez mais brasileiros ao redor do mundo, além de pessoas de outros países lusófonos, como Angola e Moçambique. Em janeiro de 2020, Natália Teles saiu da equipe responsável pela coordenação da Escola Virtual.Gov, mas seu legado não deixa dúvidas: o investimento em pessoas pode promover mudanças capazes de ultrapassar qualquer fronteira.

Por que investir em um projeto para desenvolver servidores públicos?

A minha paixão eram crianças, mas trabalhar com educação de adultos era o mais próximo que eu tinha. Em 2010, a Educação a Distância era completamente estigmatizada. EAD não era opção, era falta de opção. Trabalhando com isso, eu tive acesso a depoimentos de servidores do Brasil inteiro, em lugares extremamente remotos que, pelo o que nós oferecemos, tinham como se capacitar.

Lembro do depoimento de um aluno que ele descrevia o esforço que fazia para se deslocar até um polo de internet à rádio. Na região amazônica, ele pegava barco, cavalo e ônibus para chegar num polo de EAD e assistir ao curso, toda terça e quinta. Apesar de tudo o que diziam, EAD para aquelas pessoas era uma oportunidade de mudança, de sair do espaço restrito presencial. Um lugar onde a Enap jamais chegaria presencialmente. Isso me deu um senso de compromisso, responsabilidade e valor muito verdadeiro ao que estávamos fazendo.

Eu desenvolvi o sentido de ser servidor público na Enap. A EAD foi ganhando outros espaços. Hoje, está na vida de todo mundo. Fiz mestrado a distância porque eu queria, mas as pessoas pensavam que era mais fácil. Coincidentemente, no ano que meu mestrado termina é o ano da pandemia. As pessoas já não me olham com tanto desdém porque agora todo mundo faz EAD. Eu vivi e acompanhei esse processo no mesmo momento que ele se desenvolveu. As pessoas passaram a entender que educação a distância tem sua importância e seu espaço.

Quais as principais diferenças do ensino a distância no Brasil para outros países?

A educação a distância no Brasil tem um viés menos de qualidade e acesso e mais de fazer dinheiro. Educação a distância enriqueceu muitas empresas sem uma real preocupação com a qualidade e acesso. Não havia controle adequado, o que ajudou na estigmatização da educação a distância. Nos outros países, a história da EAD é mais antiga que a nossa. Quando a educação a distância ganhou essa possibilidade com as tecnologias de comunicação, acabou se tornando um mercado muito mercenário.

Minha experiência fora é uma experiência em que a EAD não tem esse caráter de desvalorização. Um formato mais difícil e muito exigente. A partir dessa virada que a pandemia representou, as pessoas vão começar a buscar educação de qualidade para além da modalidade.

Existe falta de qualidade na educação a distância e presencial no Brasil. Precisamos problematizar a qualidade de ambos. A tecnologia está nos forçando a repensar metodologias, formas de avaliação e aspectos da educação em geral. A educação se dividiu como se fossem duas modalidades distintas. Quando começarmos a enxergar tudo como educação, em um espectro de maior ou menor uso da tecnologia, vamos estar discutindo qualidade em qualquer contexto.

Que barreiras você precisou ultrapassar para que o projeto fosse adiante?

Os principais desafios foram institucionais. O serviço público gerencia recursos públicos, isso contribui para um controle maior do que se faz. Ao mesmo tempo em que o controle contribui para um bom uso do dinheiro, ele não incentiva a inovação. Inovar é arriscado. Eu já ouvi dados de que 10% do que você investe em inovação vai dar certo.

O serviço público vive nessa atmosfera de aversão ao risco, e a inovação por si só é arriscada. Você tem que ser criativo, um pouco menos audacioso e trabalhar dentro de limites rígidos que o serviço público coloca. Você precisa vencer essa mentalidade, ser criativo para lidar com mecanismos engessados e tem que encontrar um propósito.

A segunda dificuldade foi tecnológica. Tive dificuldade de vencer a mentalidade de como é feita a gestão do serviço público. Para mim, precisa ser descentralizado. Eu tinha dentro da minha equipe uma pessoa que entendia de Tecnologia da Informação e pessoas que entendiam desse perfil. Dentro da área de educação desenvolvemos código, fizemos gestão de máquina e houve um choque de competências. Quando olhamos para trás, entendemos esses problemas como fruto de uma mentalidade institucional que talvez ainda não estava pronta para esse cenário. A inovação é belíssima de se olhar, mas para se viver é muito tenso e desgastante. Hoje eu entendo que só vamos inovar e avançar se desenvolvermos as lideranças dentro do serviço público.

Qual a importância do investimento em pesquisa na formação da Escola Virtual.Gov?

A parceria com a UnB é fruto dessa criatividade. Quando você constrói um projeto inovador, você precisa ter pessoas com perfis que o serviço público não costuma ter. Ele é uma grande empresa finalística. Tem alguns perfis que ainda não estão nesse ecossistema, como perfis de tecnologia, produtores de vídeo, designers e marketing. Esses perfis são exceções. Não temos muitos cargos ou serviços voltados para essas pessoas. Para o desenvolvimento da Escola Virtual precisávamos de muitos perfis diferentes e não tinha como trazer todos de dentro do serviço público.

A parceria com a UnB foi uma porta de entrada para novos perfis, foi uma ferramenta fundamental para enriquecermos o projeto. Fizemos questão de manter no núcleo de servidores públicos da Enap o pensar sobre o projeto, não delegamos essa tarefa. Trabalhamos com um grupo de quase 50 pessoas, mas conseguimos seguir a diretriz do projeto. Construímos com essas pessoas o mesmo senso de propósito. Hoje eu sinto que é muito difícil encontrar em outra experiência o que vivemos ali, em termos de parceria, clima de trabalho e liberdade de criação.

Trouxemos pessoas cegas, surdas, trans e indígenas. Entendemos que toda convivência era um ponto de aprendizagem, de crescimento e inovação. O primeiro chatbot foi criado dentro desse núcleo por jovens de 20 anos da UnB, fenômenos. Eles tiveram espaço para criar e se arriscar. Eu precisava dar essa segurança para a equipe se sentir confortável para errar. Você precisa dar um contexto para que as pessoas se sintam apoiadas e façam o que fazem por acreditar naquilo. Se a pessoa fizer um trabalho mediano, dificilmente ela será prejudicada por isso. Mas ela precisa ter vontade de ir além.

Fizemos muita coisa em questão de liderança e gestão de pessoas. Entendemos que cada um poderia chegar com a sua parcela de contribuição e seu olhar de mundo a partir dessa diversidade. Algumas pessoas tiveram trajetórias tão traumáticas que enxergavam ali um espaço de cura. Para se ter mais lugares como esse é preciso ter mais líderes que permitam isso. Para mim, o caminho de sucesso do serviço público é o desenvolvimento das lideranças jovens.

Algumas pessoas tiveram trajetórias tão traumáticas que enxergavam ali um espaço de cura. Para se ter mais lugares como esse é preciso ter mais líderes que permitam isso.

Quais os principais desafios de se criar uma capacitação unificada em um país tão diverso?

A educação que oferecemos na Escola Virtual é uma educação aberta, onde 90% dos cursos podem ser feitos por qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo. Atendemos muitos africanos, falantes de língua portuguesa – especialmente de Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe – além de brasileiros que vivem no exterior. Somos referência em muitos lugares do mundo. Recebemos todos, mas alertamos que o curso é desenhado para um perfil, porque é impossível oferecer um curso que atenda todo mundo. Antes você definia o público e restringia. Agora não restringimos mais e essa abertura é muito interessante.

Outra coisa que tentamos avançar é que temos que ser muito dinâmicos. A diversidade é também temporal. As necessidades de amanhã são completamente diferentes das de hoje. A produção de curso tem que ser mais rápida, isso ainda é um gargalo. Não temos que jogar fora o cuidado e a tradicionalidade da educação, mas não podemos ignorar os novos fenômenos, senão ficaremos para trás.

Precisamos estar mais presentes nas redes sociais. Não queremos atender todo mundo com uma única solução, mas várias soluções diferentes, considerando toda a diversidade de público. Para fazer isso, tem que ter capacidade de produção, versatilidade, flexibilidade, agilidade e isso, no serviço público, sinto que ainda estamos aprendendo.

Como a pandemia impactou o projeto?

A pandemia colocou a cereja no bolo. Já tínhamos reconhecimento, grande volume de alunos e espaço. Já estávamos consolidados quando a pandemia chegou porque a solução já estava pronta. A plataforma já estava pronta para responder e canalizar os alunos do presencial. Tivemos uma explosão de demanda. As pessoas que não tinham mais a opção do presencial foram forçadas a conhecer esse espaço.

Ela só fez confirmar o que talvez algumas pessoas ainda não tinham reconhecido, que a EAD é um modelo interessante e tem seu valor. Eu mesma estava no mestrado a distância, chegou a pandemia e nada mudou pra mim. Ela consolidou o nosso trabalho, ainda bem que pensamos isso lá em 2016.

Qual o grande desafio de se trabalhar com educação no Brasil, ainda que seja para servidores públicos?

Trabalho com educação como professora, sendo mãe, no serviço público e como psicóloga. Vivemos muitas educações e hoje eu vivo a corporativa, de uma galera que já está empregada e ganha mais que a média nacional, que tem internet, computador e carro. Eu vivo a educação de elite. Quando você vai para uma educação de periferia, na faculdade, você já lida com outra realidade. Na educação de pessoas com deficiência, você enfrenta falta de acessibilidade em todos os contextos. Na Educação Infantil, você passa pela dificuldade de acesso à água, à higiene, alimentação adequada e até violência doméstica.

Quando você fala de educação no Brasil, você fala de A a Z, de uma educação mais precária e sofrida até a educação de ponta que temos em algumas instituições no país, que de certa forma contribui para esse abismo. Isso é um dilema de quem trabalha na educação. Você tem um problema básico de um lado e a coceira para pensar a educação de ponta no outro. Não podemos abrir mão de nenhuma das duas coisas. A vida me levou para um caminho onde eu falo de uma educação que tem muitas possibilidades. Mas tudo é um grande desafio.

Educação não é caridade, não é um ato de heroísmo e nobreza sempre. Temos que sair do heroísmo e buscar políticas mais estruturadas e estruturantes. Eu não tenho a resposta de como fazer isso, mas quem vive a educação vive esse dilema. É dessa dicotomia que precisamos falar, e não sobre educação a distância e presencial.

A missão da Escola Virtual sempre foi levar pra todo mundo as informações, por isso tínhamos preocupações de todas as naturezas. Não adianta querer tornar o curso acessível se você não vive isso, você não vai ter noção do valor que isso tem. Temos dois estagiários cegos e isso nos ajuda não só a produzir conteúdos mais acessíveis, mas a entender a importância disso. Precisamos democratizar o acesso, mas com qualidade.

Qual o maior desafio de se trabalhar com pessoas?

Hoje eu sinto que tenho esse talento de liderar. O maior desafio de se trabalhar com pessoas é entender que elas não são suas inimigas. Gerenciar pessoas é gerenciar mundos diferentes, pensamentos e pontos de vista. Você tem que estar aberto ao debate, a ceder e à discordância, isso é desafiador e demanda. Você gasta muito tempo do dia lidando com problemas das pessoas, que você precisa resolver para que elas sejam capazes de fazer o seu trabalho. É importante sair do egocentrismo que a posição de liderança te coloca.

Ao lidar com pessoas, você tem que estar sempre vigilante ao olhar empático. Hoje, vemos uma proliferação de capacitação em ferramentas, mas não tem tantas capacitações sobre como ouvir. Eu sou uma, e tinha uma equipe de 40, mas a ilusão de que uma pessoa fez alguma coisa é muito grande.

Uma coisa que eu fiz foi fazer com que 40 pessoas dessem o seu melhor. Eu tive uma ideia e conduzi pessoas até ela, as convenci de que a ideia era boa, de que elas eram boas o suficiente para fazer aquilo, de que aquilo valia a pena, que podíamos ser felizes e nos ajudar. Consegui fazer com que 40 pessoas se sentissem capacitadas e empoderadas para construir esse sonho comigo. Para isso, tem que ter escuta, firmeza, vigilância, humildade e feedbacks constantes. Se teve alguma coisa que eu construí foi isso.

Consegui fazer com que 40 pessoas se sentissem capacitadas e empoderadas para construir esse sonho comigo. Para isso, tem que ter escuta, firmeza, vigilância, humildade e feedbacks constantes.

Como a graduação em Psicologia te auxiliou na gestão de pessoas?

Eu me formei em Psicologia para chegar na Educação, foi um desvio, mas eu nunca exerci a Psicologia. Sempre trabalhei com Educação, nunca tinha ido nem a um psicólogo. Foi a liderança que me ajudou a dar conta desses processos relacionais e me resgatou para a Psicologia. Hoje, eu estudo Psicologia para potencializar lideranças.

Eu não sei te dizer o quanto a Psicologia me ajudou porque ela já fazia parte de mim, nunca usei a Psicologia como ferramenta de forma deliberada. Mas vi que a dificuldade que as pessoas tinham dentro do trabalho tinha a ver com a Psicologia, foi quando eu voltei para a área com outro olhar, como ferramenta de gestão e de felicidade. Hoje eu me identifico como psicóloga. Eu nunca escrevi psicóloga em nenhuma ficha de cadastro, sempre como servidora pública ou educadora, mas hoje eu sou capaz de escrever.

Como atrair o interesse das pessoas para que se tornem alunos?

A Escola Virtual, assim como outros produtos e serviços públicos, tem uma vantagem que é o monopólio. Temos um peso e relevância muito grande que acaba canalizando isso de forma quase natural, o que deixa a gente muito acomodado e nos torna muito ruins em marketing. Fazemos o básico porque, de certa forma, não precisa. Assim que lançamos a plataforma chegamos a ter mil inscrições por dia, sem nenhum esforço, em um cenário com 30 mil inscrições no ano. Quem faz marketing no serviço público é o servidor.

O que despertou o interesse de instituições internacionais no projeto?

O Brasil é uma potência e atrai muitos parceiros internacionais. A Enap tem essa legitimidade institucional, o que acaba canalizando alguns parceiros para dentro do projeto, mas trazer parceiros já fazia parte da estratégia. O projeto tinha alguns pilares, a ideia de trazer instituições foi deliberada. Toda ideia nasceu de um problema que identificamos no serviço público.

Cada instituição pública tinha a sua escola. Cada instituição tinha que ser sua equipe, seu servidor de dados, site etc. A Enap já tinha uma capacidade mais robusta de fazer isso. Se trouxéssemos as instituições para a Enap, traríamos os alunos, os dados centralizados e com o investimento poderíamos investir em cursos. Trazendo instituições ganharíamos, principalmente, relevância.

Se a Enap conseguisse trazer para dentro dela o dado, se tornaria a escola mais relevante do mundo, assim isso nunca acabaria. Estava tentando criar uma situação que não existia no serviço público, para trazer relevância, dado e consolidação. As instituições tinham zero de contrapartida. Hoje temos governos estaduais e órgãos internacionais, isso traz credibilidade. Sem ter outras escolas, centralizamos tudo e isso reduz o custo da administração anual significativamente. Você aumenta o número de alunos e reduz o orçamento.

Quais as dificuldades que você encontrou no caminho por ser mulher?

Na Enap, não lembro de viver nenhuma situação em que ser mulher foi uma questão grave. A minha resposta a isso foi mudar a minha comunicação. Eu falava com muito mais firmeza e buscava criar uma autoridade que eu não ia conseguir se eu não me comportasse deliberadamente para conquistar aquele espaço de autoridade. Você não age com o seu natural, busca outras coisas.

O feminino trouxe pra mim a questão da gravidez e de conflitos, onde pode surgir competição. Essa formação de redes de mulheres e suporte é importante para minimizar qualquer competição que aconteça. Eu trouxe muita mulher para trabalhar comigo. E você, como líder mulher, tem que olhar para funcionária e entender a situação dela quando for cobrar. Quando você é líder, passa a ser afetada pelos problemas que o gênero traz, porque a mulher é mais cobrada. Se você não estiver atenta, você também se torna um elemento que promove essa exclusão e condenação.

Você saiu da Enap em 2020. Por quê e qual o próximo desafio?

Saí em janeiro de 2020. Foi uma decisão bem tranquila e entendi que era o momento de sair, por uma questão de desgaste e para abrir portas para outras cabeças e líderes. Sabíamos que o futuro era de uma captura grande. Saí e concluí o mestrado. Estou há 10 anos na Enap e na mesma área, é preciso inovar. Então voltei para a Diretoria Executiva, para desenvolver lideranças. Fiz um projeto onde convidei seis mulheres líderes. Meu objetivo hoje é estruturar um projeto de desenvolvimento de líderes, principalmente mulheres – porque passam por questões específicas – mas líderes em geral. Liderança de criar projetos e engajar pessoas, é o que eu acredito.

Alcançar esses resultados te exigiu muito da vida pessoal?

Muito. Um dos grandes conflitos era “trabalhar muito e cuidar pouco da família”. Viajei por 40 dias para a Holanda sem o meu filho, que na época tinha um ano. Eu virei advogada da minha própria causa. Abri mão de muita coisa da vida pessoal porque eu quis, sabendo o que eu estava fazendo, mas ser empreendedora e mãe não me trouxe a necessidade de passar 24 horas do meu dia com o meu filho. Criei o cenário que eu queria para continuar trabalhando e me dedicando a esse projeto. No momento em que eu achei que era hora de abrir mão do projeto, eu fiz. Hoje meu filho é independente, minha ausência não o prejudicou, mas se a pessoa não tiver essa preparação, ela é afetada por esses julgamentos.

Ainda não tive filho de novo por causa disso. Mas acho que eu me saí muito bem e também me tornei referência, porque outras mulheres se inspiraram nessa força. Cheguei a fazer a seleção para um mestrado presencial na Holanda, que eu iria sem ele. Passei no mestrado, mas por algum motivo não deu certo. Hoje eu olho pra trás e agradeço por não ter ido, foram maravilhosos esses dois anos aqui. Mas talvez se eu tivesse ido, agradeceria por outras coisas.

Como é a sua relação com o seu filho hoje?

Só tenho um filho, então não tenho base de comparação. Mas temos uma relação de muita transparência, clareza e eu trabalho muito para a independência dele. Conversamos sobre tudo e ele compreende tudo. Ele tem uma autonomia que, no convívio com outras crianças, as pessoas comentam essa capacidade de ser autônomo e independente.

Eu busquei dar uma criação que me desse também autonomia e desse para ele segurança. Isso é engraçado, porque a maternidade é uma liderança, eu vejo muita semelhança dessas relações humanas. Quanto mais clareza, escuta e abertura você tem, mais você consegue somar. Temos uma relação nota 10.

A maternidade mudou seu olhar para o mundo?

Alguém disse uma vez que nunca conseguimos voltar, de fato, à nossa ignorância de antes. Eu não lembro muito como eu era, e se eu dissesse para você que mudou, talvez eu estaria dizendo também que quem não é mãe não tem a oportunidade de ter uma visão de mundo que hoje eu tenho, e eu não acho que isso é verdade.

É lógico que a maternidade ocupa um tempo considerável da sua vida, mas talvez eu tenha mais preocupação com o dia a dia de segurança mesmo. Você passa a ter uma coisa que se você perder dói muito, então você tem esse medo. Mas eu não sei se porque eu não estava disposta a abrir mão de muita coisa, eu trilhei uma maternidade onde enxergo que não precisei abrir mão nem criar uma necessidade. Eu acho muito doído essa coisa de abrir mão de tudo pelo seu filho depois que você se torna mãe. É uma carga pesada para todos os envolvidos.

Eu tentei fazer com que a maternidade fosse um aspecto da minha vida que eu conseguisse conciliar com qualquer outra coisa que eu quisesse fazer. Eu tentei me cobrar menos e entender que a maternidade era uma parte de mim. Dessa forma, a maternidade se tornou um pedaço do meu ponto de vista sob o mundo, e não todo.

Qual o seu maior sonho hoje?

Quando eu era nova, meu maior sonho era ter uma escola. Hoje sonho ter um empreendimento próprio para desenvolvimento de pessoas e líderes, gostaria de conciliar isso com o serviço público. Acho que eu sou servidora por vocação, gosto do que faço e acredito. Trabalho em uma escola de adultos porque amo e gostaria de conciliar isso com algo meu, unir os dois mundos.

O que a criação desse projeto te ensinou?

O meu último e mais importante ensinamento foi do desapego. O empreendedorismo, a inovação e o protagonismo são muito fáceis de ter quando você constrói algo seu, como um empresário que monta a sua empresa. É coerente você ter esse comportamento quando aquilo é seu. No serviço público, nada é seu. Você não vai ganhar mais por construir uma solução. Então você tem que ter algo maior, um propósito, precisa fazer aquilo porque acredita. O espírito público é fundamental, mas não podemos nos apoiar só nisso. Precisamos institucionalizar esse empreendedorismo.

O meu maior orgulho não é pelo que eu construí, mas pelo que eu deixei nas pessoas. Deixei pessoas mais engajadas, competentes e saí sem a vaidade de fazer falta e das coisas dependerem de mim. Ter ficado longe do papel de liderança e voltar a ser técnica, me permitiu admirar ainda mais as pessoas que estavam comigo. O meu aprendizado é que as pessoas fazem a diferença, e não soluções tecnológicas.

Jornalismo: Julia Sena