Close
“A população às vezes entende de uma forma equivocada o nosso trabalho, achando que queremos simplesmente tirá-los de lá, mas o objetivo é a preservação da vida.”
Dianne Fonseca, Meio Ambiente

Dianne Fonseca, Meio Ambiente (2020)

Conheça a vencedora Dianne Fonseca, a profissional que contribuiu para a criação de um setor específico de atuação e prevenção de desastres naturais no Pará. O mapeamento feito por ela e sua equipe já identificou mais de 120 mil pessoas em situação de vulnerabilidade. Isso permitiu que parte da população pudesse ser beneficiada diretamente com políticas públicas e ações do governo.

Natural de Belém do Pará (PA), Dianne nasceu em Jurunas, bairro da periferia da cidade. Desde criança, ela tem uma relação muito forte com o meio ambiente, plantando e colhendo no sítio da tia – também moradora da região amazônica. Mesmo sendo uma criança curiosa que gostava de Geografia na escola, pensou em cursar Direito durante o ensino médio. Chegou a prestar vestibular, mas não foi aprovada. Geologia era sua terceira opção, mas acabou se tornando a sua escolha de vida. Aprovada no curso na Federal do Pará, seu contato com o serviço público começou ainda na graduação, quando tornou-se estagiária do Serviço Geológico do Brasil. Até prestou concurso para a instituição mas, enquanto aguardava o resultado, a experiência ficou pausada por um tempo.

Ao terminar a graduação, foi fazer mestrado em Geotecnia na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. Prestes a concluir o segundo ano do mestrado, recebeu uma proposta de emprego de uma mineradora privada. Prontamente aceitou o convite, mas disse que antes iria em casa despedir-se da família. Seu voo para começar a trabalhar na mineradora sairia no domingo e, na sexta-feira, enquanto estava deitada na rede com a sobrinha, recebeu um telegrama. Era a convocação do concurso para o Serviço Geológico do Brasil, que precisava de uma resposta em até dois dias. Fonseca seguiu seu coração e optou pelo serviço público, ainda que a iniciativa privada fosse mais confortável. Em junho de 2010, começou sua jornada na instituição.

Sua experiência com desastres naturais teve início no ano seguinte, com os deslizamentos que ocorreram na região serrana do Rio. Na época, ainda não havia uma área dedicada ao mapeamento de locais de riscos no Serviço Geológico do Brasil, ou seja, a atuação se dava após os acidentes já terem ocorrido. Logo em sua primeira vez neste tipo de tragédia, a geóloga se depara com um cenário de milhares de desabrigados e mais de 900 pessoas mortas.

Durante a checagem de potenciais riscos, Fonseca conheceu um líder comunitário cuja história marcou-lhe para sempre. Segundo o jovem, ele foi salvo graças à sua mãe, que faleceu no início da chuva. Enquanto velava o corpo em uma escola da região, a casa onde morava foi levada pelo deslizamento. Para a geóloga, os relatos dos moradores reforçam o lado mais humano da profissão e contribuíram para que ela decidisse estudar ainda mais sobre desastres naturais no país. Mas, após voltar ao Pará, ela descobriu que daria início a, como ela mesma diz, seu maior projeto de vida: o nascimento de sua filha Alice.

Após o rompimento da barragem de Mariana, Fonseca e seus colegas de trabalho foram treinados para fiscalizar barragens no Brasil. O treinamento aconteceu em Brumadinho – barragem que, anos mais tarde, foi rompida. O treinamento despertou o interesse de investir no tema e voltar para o mestrado, agora pela Federal do Pará. Sua tese dedicou-se a levantar e mapear os riscos nas barragens do estado do Pará e Amapá – algo inédito na região. Três dias antes da defesa do mestrado, a barragem de Brumadinho rompe. A esta altura, Fonseca já era especialista no tema e não demorou para que fosse procurada pelos repórteres do seu estado. A imprensa queria as informações das barragens do Pará, mas elas só poderiam ser divulgadas após sua defesa. Com o título de mestre em mãos, sua pesquisa conquistou prestígio na área.

Hoje, a geóloga é referência no estado. Seus mapas de risco têm ajudado muitas pessoas com a identificação de áreas perigosas e orientação para o poder público realizar as políticas necessárias para a prevenção de tragédias. Ela segue trabalhando em situações de pós desastre por todo o Brasil. Mas o trabalho que Dianne Fonseca faz para prevenir deslizamentos nos estados do Pará e Amapá garante a centenas de pessoas o direito básico de qualquer cidadão: a vida.

A população às vezes entende de uma forma equivocada o nosso trabalho, achando que queremos simplesmente tirá-los de lá, mas o objetivo é a preservação da vida.

Dianne Fonseca, Meio Ambiente

Quais características um servidor que atua em desastres naturais precisa ter?

Coragem, porque você aceitar ir para um lugar que você não sabe como está o cenário. Sensibilidade, porque você não pode ser duro com aquelas pessoas que estão em um cenário devastador de suas vidas, às vezes é o pior momento da vida daquela pessoa. Você pode até ser frio, mas é muito desumano. Ao mesmo tempo, você não pode sentar do lado da pessoa e chorar junto. Você precisa ser verdadeiro e mostrar que a pessoa está em uma área de risco.

Muitas vezes, não tinha como nem esperar a assistente social para ter a conversa, porque era só uma e tínhamos muitas pessoas para conversar. Eu ouvia muitos relatos difíceis, então nesse momento eu respirava fundo, engolia o choro e falava com eles. Já cheguei em áreas que a rua inteira tinha desaparecido e os poucos vizinhos que tinham ficado já não nos escutavam mais. É um trauma de desastre mesmo. Ou a pessoa consegue tomar uma ação, ou ela fica apática e relativiza. Quando sinalizei a uma senhora que a área dela estava em risco, a moradora da frente disse: “Eu já lavei tantos corpos que eu nem ligo mais”.

Em quantas cidades você já atuou para apoiar ações de pós desastres naturais?

Já atuei em algumas. No mesmo dia que eu voltei da região serrana, acabei participando de um outro desastre. Dia 4 de janeiro, quando eu cheguei no aeroporto de Belém, desliguei o celular e fui para o aniversário da minha prima, em Abaetetuba (PA). Existem algumas lendas no Pará, incluindo a lenda da cobra grande, que dizem que mora debaixo da cidade e às vezes ela se mexe, e quando ela se mexe, a beira do rio cai. Chamamos esse processo de erosão fluvial.

Na festa em família, no sábado à noite, falaram que a cobra se mexeu. Na segunda-feira, quando eu ia embora, resolvi ir na beira do rio para ver o que era isso. Quando cheguei lá, vi que era algo gigantesco. Quando liguei o celular, muitas mensagens do trabalho dizendo para eu ir para Abaetetuba, onde eu já estava. Liguei para as pessoas da empresa e pedi para mandarem meu uniforme e uma equipe para eu treinar os novos concursados. Fui parar lá por um acaso. E a população às vezes entende de uma forma equivocada o nosso trabalho, achando que queremos simplesmente tirá-los de lá, mas o objetivo é a preservação da vida.

Em torno de quantas pessoas já foram beneficiadas diretamente com o trabalho de mapeamento de riscos?

Mais de 120 mil pessoas. Nesse caso, fui a primeira a montar um grupo para estudar os riscos do estado do Pará. Mas essas ações são feitas em equipes da região Amazônica e Brasil. Quando comunicamos os riscos para os moradores, é muito importante falar em uma linguagem que eles entendam, que nem sempre é a técnica. Eles têm o direito de saber o que está acontecendo.

O serviço público vai onde ninguém quer ir.

Como o seu trabalho impacta a sua vida pessoal?

Meu marido também é geólogo, o conheci na Universidade Federal do Pará. Ele veio de uma comunidade ribeirinha na Ilha de Marajó e é funcionário da Agência Nacional de Mineração. Ele sabe que eu gosto muito do que eu faço. Não somos obrigados a ajudar nos desastres, mas eu sempre vou porque são nesses momentos onde eu aprendo mais. Trabalhamos muito com a percepção. Quando vou para um pós desastre é um momento que eu aprendo muito. Já viajei na véspera do natal. Eu não tenho como celebrar o natal pensando que tem um monte de gente em área de risco, precisando do meu tempo. Eu poderia fazer outras coisas, mas eu tenho a oportunidade de exercer uma profissão que ajuda as pessoas, às vezes imediatamente, e isso é muito gratificante. Às vezes as pessoas ganham novas casas, são colocadas em lugares mais seguros, bonitos e planejados. Isso acontece em poucos lugares, mas nessas horas percebemos que está valendo a pena.

Você diz que o seu maior projeto se iniciou em 2011, se tornando mãe da Alice. O que a maternidade mudou em você?

É a pessoa mais importante da minha vida. Eu tentei frear um pouco mais o ritmo por conta dela, para dar mais atenção. Consegui ser mais humana e entender o contexto das pessoas. Às vezes, quando começamos a trabalhar com isso muito novos, não entendemos algumas coisas. As pessoas não estão ali porque querem. Depois do nascimento da Alice, quando eu entrava em áreas de risco com muitas crianças, eu ficava pensando na situação daqueles pais. Eu me esforçava ao máximo para melhorar aquela situação. Eu tentei facilitar ainda mais o acesso público às pessoas. Acabei me conectando mais ainda com elas.

Alguma vítima de desastres que você apoiou fez ou faz parte da sua vida? Como foi isso?

Não. A gente se conecta muito com a defesa civil, mas tentamos não criar laços de longo prazo com as pessoas. Sabemos que a situação não vai se resolver tão cedo e aquilo pode ser transferido para a nossa vida inteira e virar uma cobrança. Mas tem pessoas que eu não esqueço. Na região serrana tinha uma menina que me levou em uma área. Ela andava na frente e a gente ia atrás. Ela andava e catava pedras, eu disse para ela que ela daria uma boa geóloga. Anotei o endereço dela para mandar umas amostras de pedras e me pergunto hoje: “será que ela virou geóloga?”. Perdi a caderneta, mas ainda quero fazer isso um dia.

Se algo não for feito para que esse cenário mude a longo prazo, sempre vamos remediar a situação.

Como foi o processo de transformar a experiência vivida em Mariana em um trabalho acadêmico?

Houve o rompimento da barragem de Mariana e depois do rompimento o governo começou a se movimentar. Começamos a ser treinados para fiscalizar barragens no Brasil. Eu fui treinada em Brumadinho, antes do rompimento. Visitamos a barragem, andamos nela, eu almocei no restaurante que foi levado junto. Quando eu saí do treinamento com a equipe de barragem, eu entendi que precisava estudar isso e levar isso para o estado do Pará. Primeiro, eu fiz uma pesquisa de quantas barragens existiam no estado e percebi que os órgãos não tinham informação nenhuma. Foi quando eu percebi a gravidade da situação. Então eu montei um banco de dados a respeito das barragens do estado do Pará e Amapá.

Depois, eu comecei a bolar uma forma de criar um mapa com essas informações. Eu queria transmitir para as pessoas que essas barragens estão relacionadas com o meio ambiente no entorno. Barragens dentro de áreas de preservação ambiental, unidades próximas de área indígena. Eu queria que as pessoas tivessem um olhar da importância disso, porque elas estão no contexto físico da Amazônia. Tentei transferir isso de uma forma simples. Há pessoas que podem fazer isso em Minas, mas no estado do Pará eu sei que ninguém ia fazer, não tinha o básico.

Aconteceu a infeliz tragédia do rompimento da barragem, três dias antes da minha defesa de mestrado. Marcaram a minha apresentação para segunda-feira, na quinta-feira acontece o rompimento de Brumadinho. As pessoas já sabiam que eu estava pesquisando a respeito das barragens no Pará. Quando rompeu, eu parei para almoçar e vi a cena do rompimento pela televisão. Eu demorei um tempo para processar aquilo. Depois disso, meu telefone começou a tocar. Eram pessoas querendo informações das barragens. A gente nunca foi treinado para lidar com a imprensa, mas eu sabia que seria importante para criar referência de uma equipe de risco. A imprensa ligou muito depois de Brumadinho.

Meu orientador disse que eu não podia divulgar nada da pesquisa antes da defesa. Eu avisei que só poderia dar os dados depois da defesa. Assim que eu realizei a defesa, o mapa foi distribuído no WhatsApp. Dei várias entrevistas depois apresentando a dissertação. Acabei virando uma referência no estado do Pará para falar sobre o assunto. A especialização que estou cursando foi uma tentativa de levar esse conhecimento para Belém. Fiquei três anos tentando montar uma turma para que eu pudesse estudar, mas a turma só se concretizou depois do rompimento da barragem em Brumadinho. Agora estou amadurecendo a ideia do doutorado nessa área da gestão de segurança de barragens.

Se você pudesse implementar uma medida básica que ajudasse na prevenção de desastres ambientais no Brasil, qual seria?

Eu acho que tem que se criar um pacto no governo. Por isso o serviço público é tão importante, ele vai onde as empresas privadas não vão. Você não vai ver empresa privada pensando em área de risco, isso não é negócio e não gera renda. O serviço público vai onde ninguém quer ir. É necessário criar um pacto de propostas e políticas públicas para que esse cenário mude. Se algo não for feito para que esse cenário mude a longo prazo, sempre vamos remediar a situação. Tenho planos de que no futuro eu possa levar isso para dentro do governo do estado do Pará, para que o governo do estado crie um setor de gerenciamento de riscos e desastres. A experiência que eu tive trabalhando nessas ações é que não existe ainda um planejamento adequado para atuar. Caso um desastre de grande proporção, como o que aconteceu em Minas Gerais, aconteça no Pará, eu sei que vamos sofrer com isso. Não dá tempo de tomar medidas de socorro e assistência com o cenário que temos hoje. Eu falo do Pará, mas o desejo é levar isso para toda região amazônica.

É possível que a sua filha viva em um mundo melhor do que é hoje?

Já tive mais esperança, mas diminuiu um pouco. Como nortista, sei que ainda existe muito preconceito e exclusão. Eu gostaria que ela encontrasse um cenário diferente, com mais oportunidades para todos. O nível de consciência do brasileiro está mudando, mas às vezes retrocedemos de um modo que a esperança diminui. Espero que a minha filha cresça sabendo o que realmente importa.

Como é preparar uma criança para a vida lidando constantemente com a morte?

Eu passo pra ela que isso é algo que todo mundo vai viver. É um processo natural na vida de qualquer pessoa, precisamos continuar com a vida, os planos e tentar fazer alguma coisa. Qualquer movimento para que as coisas mudem, já é muito. Cada um fazendo alguma coisa já planta sementes para que uma geração nasça um pouco mais consciente.

Jornalismo: Julia Sena