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“Eu aprendi que a paz não é a ausência de conflitos, é conseguirmos lidar com eles e resolvê-los de forma pacífica.”
Andrea Castro, Meio Ambiente (2020)

Andrea Castro, Meio Ambiente (2020)

Conheça Andrea Castro, a procuradora que tem ajudado a reescrever a história de Cubatão (SP), município da Baixada Santista que foi palco de uma das maiores tragédias ambientais do país: o incêndio da Vila Socó. Na Secretaria Municipal de Habitação de Cubatão, Castro já liderou dezenas de ações de regularização fundiária para pessoas de baixa renda, impactando cerca de dez mil famílias da região ao longo dos anos. Apesar do trabalho de sucesso desenvolvido no município, trabalhar na área de Meio Ambiente nunca foi um plano.

Natural de Santos, São Paulo, Castro foi criada na Vila Operária com os pais e dois irmãos. Desde pequena foi incentivada pelo pai a conhecer a história da região através dos monumentos históricos da cidade. A aproximação com a cultura a levou a participar de muitos projetos na juventude, como o teatro e o Movimento de Ação Secundarista (MAS). As experiências a fizeram tomar gosto pelas causas sociais e ambientais. Pensou em prestar vestibular para Comunicação Social, mas acabou optando pelo Direito. Sua história com Cubatão começa em 1992, quando se torna procuradora do município. Castro chegou a atuar como coordenadora de Meio Ambiente e procuradora geral antes de assumir a Secretaria de Habitação de Cubatão, onde desenvolveu projetos de planejamento urbano e elaborou a legislação de Estudo de Impacto de Vizinhança.

Apesar do vasto tempo trabalhando para o município, antes de sua chegada Cubatão já era conhecido nacionalmente por um grande desastre ambiental sem precedentes na história do país. No início da década de 1970, foi criado um polo industrial em Cubatão. Em 1984, um vazamento de petróleo atingiu a Vila Socó, incendiando 1.200 barracos e deixando cerca de 3 mil pessoas desabrigadas. Naquele período, foram identificados oficialmente 93 corpos, mas em 2014 foi instaurada a Comissão da Verdade e a investigação do Ministério Público concluiu que 508 pessoas morreram no incêndio.

Na época, ainda não existia uma legislação específica para controle de emissão de gases das indústrias, o que trouxe também grandes problemas de saúde para a população. A poluição atmosférica ocasionou um aumento de doenças pulmonares e de crianças nascidas com anencefalia, uma má formação embrionária em que o cérebro não se desenvolve completamente. A ONU chegou a classificar Cubatão como o município mais poluído do mundo. A Vila Parisi, uma das favelas da região, ficou conhecida mundialmente como “Vale da Morte”.

Com um histórico trágico, o desafio de Castro era grande no município. Ela apostou no diálogo para promover as mudanças necessárias nas condições de moradia da cidade, o que deu início a uma série de projetos. A população do Morro do Mazargão, que antes vivia em área de preservação ambiental, recebeu unidades habitacionais, com toda a infraestrutura necessária, o que ajudou a recuperar uma área de mais de 100 mil m² de vegetação nativa. A antiga Favela do Papelão era formada por famílias que não tinham condições de habitação. Com a colaboração popular, fomentou-se um projeto de educação ambiental e sanitária para os moradores. A partir da mesma iniciativa foi criado o conjunto habitacional Jardim Real, nome escolhido pelos próprios moradores que habitavam áreas de reserva ambiental. Além de terem adquirido o título de posse das novas propriedades e morarem em um espaço ambientalmente responsável, concretizaram o sonho de uma moradia digna.

A Vila Socó, traumatizada com o incêndio da década de 1980, também foi beneficiada pela regularização fundiária promovida por Castro e passou a se chamar Vila São José. Ali, mais de 400 famílias foram impactadas diretamente com o projeto. Já a Vila Parisi, conhecida como “Vale da Morte”, contou com o apoio da Universidade Católica de Santos para a formação de lideranças comunitárias como mediadores do projeto de regularização fundiária. Passados 35 anos do período em que a cidade era conhecida pelas consequências da poluição industrial, mais de mil famílias receberam seus títulos de propriedade. Ao todo, cerca de 10 mil famílias já foram impactadas com os projetos de regularização fundiária em Cubatão.

O projeto que segue em andamento é da Vila Esperança, maior assentamento urbano informal da Baixada Santista, com cerca de 35 mil habitantes. A iniciativa busca construir unidades habitacionais em grande escala, recuperar as áreas ambientais da região e urbanizá-la por meio da construção de ruas, praças, playgrounds e áreas verdes. O projeto ainda será concluído, mas depende de um investimento alto para ser finalizado. Independente dos percalços, todo o trabalho realizado na Secretaria Municipal de Habitação de Cubatão tem sido transformador. Andrea Castro nos mostra que o diálogo e a persistência são capazes de cicatrizar feridas e devolver dignidade a uma população.

Eu aprendi que a paz não é a ausência de conflitos, é conseguirmos lidar com eles e resolvê-los de forma pacífica.

Andrea Castro, Meio Ambiente

Qual a importância de se investir em regularização fundiária no Brasil?

Eu acho que é corrigir um erro histórico. A pessoa quando tem a propriedade ela cuida do meio ambiente ao redor, há a questão de pertencimento. O desenvolvimento econômico de qualquer país passa pela questão da regularização fundiária. O desenvolvimento econômico, social e ambiental do país passa por isso também. Não adianta fechar os olhos e só regularizar o que está dentro da cidade formal. O mercado informal imobiliário existe e está aí trabalhando muito forte.
Existem os grandes latifundiários que exploram a pobreza extrema dentro dessas áreas. A regularização fundiária é para proteger o direito à moradia. Isso é um grande instrumento para se combater a desigualdade social e fingir que isso não existe não é solução. Solução é você enfrentar de alguma forma.

No Projeto Jardim Nova República (Vila Parisi), a participação popular na regularização fundiária de Cubatão foi uma experiência única no país. Qual a importância de se ter a mediação nesse caso?

Ao longo do caminho fomos trabalhando a participação popular. Quando perguntam para as pessoas quais são os setores mais importantes do país, geralmente elas falam de saúde, educação, segurança e emprego. Dificilmente falam de habitação. Eu fico muito triste com isso porque se você não tiver moradia digna você não tem saúde, você não tem emprego e nem segurança, porque essa população é discriminada. Muita gente não dá emprego para quem não tem endereço nem CEP.

Hoje nossa visão é de muito menos remoção e mais consolidação. Nosso objetivo é consolidar as pessoas onde elas estão o máximo possível e trazer essas pessoas para regiões centrais. Os projetos habitacionais são feitos onde a terra é mais barata e onde a terra é mais barata é lá longe, onde não tem infraestrutura. Nossa preocupação hoje é trazer isso para as regiões centrais onde a infraestrutura já existe.

Quando começamos a trabalhar mais a participação popular, construímos o projeto com a sociedade. Eu percebo em algumas lideranças de comunidade lideranças mais novas e com escolaridade maior, o que é muito bom. Toda a questão do projeto habitacional gera conflitos. Mas eu aprendi que a paz não é a ausência de conflitos, é conseguirmos lidar com eles e resolvê-los de forma pacífica. Estamos formando 30 lideranças comunitárias para que os conflitos sejam resolvidos pela própria comunidade.

A população de Cubatão sofreu muito nas últimas décadas. Como recuperar a confiança e credibilidade do cidadão no serviço público?

Os projetos são de longo prazo. A melhor arma que temos é a transparência, com os projetos e com a sociedade. Os prefeitos e vereadores mudam, mas eu vou continuar aqui. Essa relação de transparência deu certo e a população acaba reconhecendo isso. Tudo isso é um processo de construção de credibilidade.

O servidor público tem sofrido um massacre por acharem que não fazemos nada e ganhamos milhões, mas o servidor público é quem move as políticas públicas no país. Nós fazemos isso com muito amor.

É apaixonante a advocacia pública. Nela, você tem a oportunidade de mudar a cara da cidade, a configuração e a vida de muita gente. Cada vez que entrego um título eu sinto que honrei meu diploma.

A assistente social que trabalha comigo é da Vila Esperança. Começou com uma identificação de liderança comunitária, se apaixonou tanto pelo trabalho das assistentes sociais que foi fazer faculdade. Ela, inclusive, mora em um dos nossos conjuntos habitacionais. Passou em um concurso público da prefeitura e hoje trabalha com a gente. É muito gratificante você ter essa oportunidade de modificar a realidade das pessoas. Essas pessoas só precisavam de uma oportunidade. Eu acho que certas coisas só o serviço público proporciona. Quando você vê a população crescendo junto, esse é o melhor prêmio que podemos ter.

Não vamos ser um país desenvolvido se não curarmos as feridas da desigualdade social.

No Projeto Jardim Real vocês deram muita liberdade para os moradores, como escolha dos vizinhos e nome do bairro. Por quê?

Vem da observação de acertos e erros. Antes, não havia flexibilização dos parâmetros. O Jardim Real foi o primeiro projeto que resolvemos deixar eles escolherem seus vizinhos e deu super certo. Isso é interessante para nós porque elimina conflitos. Aconteceu uma situação ali que os vizinhos cobriram por um tempo a cota condominial de um rapaz que ficou desempregado, tudo por conta dessas relações de afinidade. Eles escolheram a cor do prédio, os vizinhos e o nome do bairro. É uma coisa legal porque dá a eles uma sensação de pertencimento. Isso faz com que eles se apropriem do novo local e não percam essa sensação. Deu tão certo que passamos a replicar nos outros projetos.

Devido ao histórico do município, foi mais fácil ou mais difícil formar na população uma educação ambiental?

Em alguns aspectos foi mais fácil e em outros não. A questão do estigma mexeu muito com a autoestima da população, inclusive das áreas nobres. A população local pensa que as pessoas são garimpeiras em Cubatão porque vem de fora para ganhar dinheiro, mas não tem o amor pela cidade, e aí eles se fecham muito e não aceitam a novidade. Por outro lado, existe a necessidade de dar uma virada e uma resposta para tudo o que aconteceu.

Quais os principais cuidados que se deve ter ao remover famílias de área de risco?

A primeira coisa é a questão do mapeamento do que é a área de risco e o que se pode manter ou não. Existe um trabalho de conscientizar a população de que eles estão em risco. É difícil para eles, porque estão acostumados a viver de uma forma, em um ambiente muito mais amplo. Fazemos com que a população participe da recuperação ambiental da área. Em um dos projetos, as crianças plantaram as árvores e receberam uma plaquinha com seu nome e certidão de nascimento da árvore. Talvez o que ainda falte seja respeitar a história que a comunidade tem, o que muitas vezes não é levado em consideração.

Esses projetos não são só números, são pessoas.

Qual a parte mais difícil do seu trabalho?

A parte mais difícil é a execução técnica dos projetos. Envolve uma gama de profissionais, desde o topógrafo, os biólogos, engenheiros civis, arquitetos até os engenheiros ambientais. A coordenação de tudo isso é punk. E tem o trabalho de traduzir e esmiuçar tudo isso para a comunidade. Os projetos acabam tendo um período de duração muito grande e a comunidade tem pressa. Existe uma legislação altamente intrincada e um trabalho multidisciplinar que envolve muitas mãos para que seja feito. Coordenar tudo isso é a parte mais difícil, sem dúvidas.

Qual o maior desafio hoje a ser vencido em Cubatão?

Acho que um dos desafios é o preconceito com que alguns técnicos veem nesse trabalho. O Ministério Público avançou e evoluiu muito, mas ainda temos um preconceito de parte da população que diz que trabalhamos para favelados. Não é esse o perfil de morador que a cidade quer. Existe um desafio estrutural porque não é só uma política de habitação. Fazer todo esse trabalho de transversalidade nem sempre é fácil. Temos secretarias muito parceiras, como a de Educação, Saúde e Meio Ambiente, mas nem todas conseguem enxergar a importância do trabalho em rede.

Acredito que hoje o maior desafio é o desmonte total da política pública de habitação. Podemos ter críticas à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), mas ela é a maior produtora de habitação do nosso país, principalmente para a população mais vulnerável. Seu fechamento e extinção é extremamente complicado.

Qual foi a situação mais marcante que você já viveu ao realizar seu trabalho no município?

Teve uma no Jardim Real, antiga Favela do Papelão. Foi a condição mais degradante que eu já vi um ser humano viver. Era uma família que ficava bem depois do rio, em um lugar muito afastado, e eles nunca participavam de nenhuma reunião, eram resistentes. Como o lugar era muito afastado, nos primeiros cadastros eles passaram despercebidos. Quando fui lá com a equipe para entender a situação deles, eu vi um homem que apresentava problemas mentais e vivia amarrado em uma mesa. Aquilo me marcou de uma forma que até hoje eu choro. É impressionante a forma degradante que alguns seres humanos podem viver e como é fundamental que continuemos com essas políticas.

Existe a parte boa que é o empoderamento das famílias atendidas pelo projeto. No projeto Jardim Real, cada bloco de apartamentos tinha um padrinho para receber as famílias e apresentá-las à nova casa. Na época, eu era madrinha de um dos blocos e recebi uma família. Quando eu mostrei o apartamento, eles acharam que iam morar só na sala. Quando as crianças viram que iam ter um quarto, elas ficaram muito felizes. Elas nunca tinham visto torneira e, para eles, tudo era muito novo. Quando eu estava andando pelo condomínio, uma das crianças me puxou para mostrar a casa. A felicidade daquelas crianças foi uma coisa impressionante. São coisas que temos no dia a dia e não damos valor, mas para eles foi algo de outro mundo.

O desenvolvimento econômico de qualquer país passa pela questão da regularização fundiária.

Você diz que o Projeto da Vila Esperança é o maior desafio profissional da sua vida e dos profissionais que estão trabalhando com você. Por que?

O pessoal diz que a Vila Esperança é minha filha. Considero o meu maior desafio porque é a maior comunidade da Baixada Santista, onde hoje moram cerca 35 mil pessoas. Do ponto de vista técnico, é uma urbanização de nível complexo e dentro de uma área de mangue. Devolver a franja de mangue é integrar ao plano de manejo do parque municipal que já existe. No nosso projeto, você cria um cinturão verde que abraça toda a cidade de Cubatão. Toda a questão da recuperação ambiental de trabalho no mangue, o tamanho da população, é realmente o grande desafio da minha vida.

Qual o impacto desses trabalhos na sua vida?

O impacto está em tudo. Não dá para separar o pessoal do profissional. Meu filho conhece todas as favelas e os projetos. Não tem como não ter consciência dos privilégios que você tem, vivendo onde você vive e de pensar num futuro para o país, sem pensar no impacto dessa desigualdade. Não vamos ser um país desenvolvido se não curarmos as feridas da desigualdade social. Trabalhar com isso tudo me faz um ser humano melhor e mais grato.

Eu não seria eu se não tivesse feito esse trabalho, de enxergar a igualdade de todos nós enquanto seres humanos. Esses projetos não são só números, são pessoas. Eu conheci essas pessoas e aprendi que todos nós temos saberes diferentes. Esses saberes diferentes podem ser complementares. Aprendi muitas coisas com ele, inclusive a amar a natureza. Não existe uma só forma de saber, existem várias, e cada um pode trazer um pouco para a nossa sociedade. O diploma universitário não traz todo o saber, só uma parte dele.

O que você mais gosta no seu trabalho?

Uma das coisas que eu mais gosto é a multidisciplinaridade do trabalho. Aprendi a respeitar muito o trabalho das assistentes sociais, por exemplo, porque elas estão na linha de frente do projeto. Do ponto de vista de crescimento, é muito bom ver coisas que você jamais imaginaria ver.

Qual a lição mais valiosa que você aprendeu no serviço público?

O que de mais valioso o serviço público me trouxe foi a visão mais globalizada das coisas, o planejamento. Através do serviço público você lança sementes que vão germinar em 10, 20, 30 e 40 anos. Planejamento urbano é isso. Quando você elabora um plano diretor, você está pensando em coisas para daqui a muitos anos. Na mudança a longo prazo, existem coisas que só o serviço público vai fazer porque o serviço público visa o bem estar social, não o lucro. Essas políticas de assistência para a população mais vulnerável só podem ser desenvolvidas pelo setor público.

Jornalismo: Julia Sena