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“Se eu tivesse que escolher novamente a minha profissão, eu escolheria ser professora, mesmo diante de todo o cenário que encontramos no nosso país.”
Professora Marli Fernandes, Educação (2020)

Professora Marli Fernandes, Educação (2020)

Conheça a vencedora na categoria Educação, a professora Marli Fernandes, responsável pela revolução educacional no município de Apucarana, no estado do Paraná. À frente da Autarquia Municipal de Educação, Fernandes garantiu melhorias a todas as pontas da área. Promoveu mudanças estruturais em escolas da Educação Infantil, criou um currículo de ensino unificado, proporcionou um salário acima do piso para os professores e aproximou a agricultura familiar das escolas. Os resultados se refletem no desempenho do município no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) – de 6,3 em 2013 para 7,5 em 2017 – e na maior participação dos estudantes da rede pública em Olimpíadas Científicas nacionais.

Os frutos da sua trajetória são plantados desde a infância. Nascida em Apucarana, em uma família de nove irmãos, as mulheres eram maioria na casa, mas foi o pai quem cultivou sua paixão pela educação. Convidada por ele a ensinar música para um grupo de mulheres na igreja, começava ali seus primeiros passos como professora. Sem saber o conteúdo previamente, Fernandes precisou ser ensinada para passar adiante a matéria. Seu pai dizia que ela aprenderia 20 lições para ensinar 3. Ao questionar o método, a resposta é lembrada até hoje: “quem ensina precisa estar bem à frente de quem aprende, caso alguém estude além e queira saber mais”. Fernandes transformou as palavras em lição e as carrega como mantra.

A menina tímida sempre gostou muito de estudar e cultivou uma boa relação com seus professores. Ainda no primário, participou de uma prova onde foi muito bem classificada. O resultado rendeu-lhe um certificado, que guarda com carinho até hoje. No ano do vestibular, já casada e com filhos, optou por cursar Administração, mas logo percebeu que não estava feliz com a escolha e mudou para Pedagogia. Se especializou e fez mestrado na área de Educação na Universidade Federal do Paraná. No primeiro concurso que prestou para o estado, foi convocada a dar aula no curso de formação profissional docente no Colégio Estadual Nilo Cairo, considerado o maior do município. Lá, atuou por sete anos e passou pelos cargos de professora, coordenadora de estágio, coordenadora do curso e diretora.

Em 2014, Fernandes foi convidada a assumir a Secretaria Municipal de Educação e Desenvolvimento Humano de Apucarana, onde deu início ao desafio que mudaria a vida de milhares de crianças. A professora entendeu que a educação integral implantada no município em 2001 precisava passar por mudanças para alcançar resultados satisfatórios. Logo de início, identificou problemas estruturais e pedagógicos que refletiam em uma longa lista de espera para atendimento infantil e na desvalorização dos profissionais. Para Fernandes, a transformação precisaria passar por todos que atuavam, direta ou indiretamente, com educação. Formou equipes de trabalho com foco em cada setor, convocou os docentes para a formulação de um currículo de ensino unificado e investiu na melhoria de todas as escolas.

Desde a sua chegada na secretaria, a prefeitura já investiu mais de 50 milhões na construção e ampliação de prédios escolares. Também foi criado o programa Terra Forte, uma parceria do município com os agricultores familiares, onde são oferecidos incentivos aos pequenos agricultores, como distribuição de mudas, calcários e fosfato natural. Parte das suas produções são revertidas para as merendas das escolas municipais. O cardápio é disponibilizado no site da Autarquia, para que pais e responsáveis tenham acesso ao que é oferecido às crianças. Além disso, os pequenos com restrição alimentar, têm um cardápio compatível com as suas necessidades, contando com o acompanhamento de uma equipe de nutricionistas.

O currículo municipal passou a ser único para todas as escolas, nivelando a qualidade e o conteúdo ensinado na rede pública. Os professores recebem salário acima do piso e passam, junto com os gestores, por cursos de formação continuada duas vezes ao ano. Os resultados fizeram o município ser homenageado com a medalha Paulo Freire, do Ministério da Educação, em 2017. A jornada de Marli Fernandes no serviço público, representada em cada conquista de Apucarana, mostra como a educação de qualidade pode ser transformadora e real.

Se eu tivesse que escolher novamente a minha profissão, eu escolheria ser professora, mesmo diante de todo o cenário que encontramos no nosso país.

Professora Marli Fernandes, Educação (2020)

Você percebe alguma diferença no perfil dos alunos da sua época para hoje?

Tem muita diferença. Eu era uma menina quieta, falava pouco, mas até as salas de aula eram assim. O aluno não expressava tanto o que ele queria, pois o rigor da disciplina era muito grande. Tínhamos muito medo de desobedecer ao professor e a disciplina era muito rígida nesse tempo, sem muitas oportunidades de realizar trabalhos mais lúdicos. Uma educação conteudista. Não vou dizer que era ruim, pois nós aprendíamos. Hoje, percebemos bastante diferença dos alunos e até sua relação com a família.
As famílias dão mais liberdade para os filhos, entendem que o aluno tem que se expressar mais na escola. Às vezes, nos deparamos com situações de pais que defendem os seus filhos ao invés de acreditar no professor. Hoje, essa relação é mais aberta, mas também extrapola um pouco na escola. O trabalho também é diferente. Se notarmos o modelo de Apucarana, nós trabalhamos o conteúdo, mas também trabalhamos a expressão corporal, por meio da dança, música, artes marciais e a educação física. A criança também tem muita oportunidade de expressão, não só escrita, mas oral e corporal, de modo que a aprendizagem ocorre de muitas formas.

Qual o papel dos pais na formação educacional de uma criança?

O papel dos pais é a educação da postura, de princípios, valores e colocar o respeito aos mais velhos e ao professor. Na escola, a criança vai vivenciar essa educação com os demais, vai demonstrar isso nos trabalhos em equipe, na cooperação, na empatia com os colegas e, aí sim, aprender os conhecimentos científicos. Vejo que o papel da família é extremamente relevante nesta formação.

Como sua família recebeu o fato de você querer ser professora?

Como eu já era casada na época, tive o incentivo do meu esposo e dos meus pais também. Meu pai e minha mãe tinham muito orgulho de dizer que eu era professora. Isso é uma coisa muito inédita nos dias de hoje. Mas os meus pais, talvez pelo tempo de vivência deles, tinham orgulho disso.

Você pensou em seguir outra profissão quando criança?

Não, sempre quis ser professora. Vivemos num país em que as pessoas acham que alguém se torna professor porque não achou outra coisa para fazer na vida, eu mesma já ouvi isso muitas vezes. É muito triste porque hoje, se eu tivesse que escolher novamente a minha profissão, eu escolheria ser professora, mesmo diante de todo o cenário que encontramos no nosso país. Eu me realizei e me realizo sendo professora. Esse convívio com a educação ainda me encanta. Não trabalho pelo salário e nem pelo dinheiro, trabalho naquilo que eu gosto de fazer.

Qual a sua relação com os seus filhos e netos quando o assunto é educação?

Apesar do acompanhamento escolar dos meus filhos, procurei não intervir na escolha deles de profissão. Com os netos, eu procuro acompanhar e incentivar, mostrando a importância da educação e de sempre estudar.

Quais foram as maiores dificuldades encontradas para implementar as mudanças propostas?

Em 2013, ainda na Secretaria de Ensino Superior, o prefeito já pediu que eu coordenasse a Conferência Nacional de Educação (CONAE), mesmo não estando na educação básica. Durante a conferência, já percebemos várias situações que precisavam ser reestruturadas no município. Nesse momento, iniciamos uma formação a nível de especialização para diretores e coordenadores do município. Fizemos esse curso e percebemos que os professores não estavam acostumados a estudar, debater e propor um projeto pedagógico para a escola. Os professores recebiam isso de forma determinada da Secretaria de Educação. Quando assumi, fiz um diagnóstico de toda a rede.

A educação integrada que foi implementada de início não estava bem estruturada. Eu costumo dizer que o espaço também educa. Se a criança chega na escola e o espaço é organizado, a merenda é bem-feita, ele aprende com tudo isso e vai querer cultivar essa ideia em casa. Transformamos os espaços criando hortas e projetos de jardinagem. Estruturamos tudo. Olhamos para as escolas entendendo que todas elas precisavam passar por reforma e ampliação. Criamos uma equipe de engenharia para ter esse olhar. Uma estrutura compatível para aluno e professor ficarem nove horas dentro da escola. Criamos departamentos em todos os setores e uma equipe pedagógica para um pensamento novo.

Como é a formação continuada e por que acontece duas vezes ao ano?

Nós entendemos que essa estrutura pedagógica é de extrema relevância para o sucesso do trabalho. Quando assumi, fiz uma formação em nível de especialização com professores, diretores e coordenadores para que pudessem perceber qual o papel da escola e de cada um envolvido naquele núcleo. Trouxemos isso no debate com professores para a construção de currículo, discutindo ponto a ponto todo o processo. Semestralmente, discutimos tudo isso com eles, colocando junto leituras de enriquecimento e trazendo esse debate. Costumo trazer para os debates pessoas que tenham conhecimento, embasamento e pé no chão quando o assunto é educação. Precisamos de pessoas que entendam o que o professor precisa debater dentro da sala de aula, algo que converse com o seu cotidiano.

No início de 2020, trouxe a professora Mariana Inês Fini, ex-presidente do Inep, responsável pela avaliação do Enem e os descritores de avaliação da prova Brasil. Então, o professor precisa discutir muito, ler, debater e construir junto. Em 2020, fizemos construções coletivas do plano de aulas, envolvendo todos os professores da rede. Tivemos 76% das crianças participando ativamente das atividades online. Os outros 24%, criamos outras formas de atender, com material impresso entregue em casa e as mesmas aulas transmitidas online passaram em um canal da tv aberta. Ficamos bem surpresos de conseguir fazer o professor se reinventar e dar conta desse processo. Por isso as formações são tão importantes.

Colocar o professor como um debatedor de ideias e sugestões.

O que representa, para você, ser uma mulher educadora no Brasil?

Representa muito. Eu vejo que muitas situações difíceis do país poderiam ser resolvidas pela educação. O bom andamento está na gestão e no comprometimento das pessoas. Vejo que em alguns lugares a dificuldade é muito maior do que em Apucarana, como estados que têm linguagens indígenas. A construção de currículo para eles é muito mais difícil. O transporte em outros estados é muito mais precário. Nossa cidade é muito tranquila, um lugar onde você conhece todo mundo. Existe muita diferença de um lugar para o outro e cada gestor tem que ver a especificidade do seu município.

Mas, para mim, ser educadora e gestora é algo que eu faço com muito amor e prazer. Quando eu vou para a escola e olho para aquelas crianças, eu imagino meus filhos e netos. Uma coisa que me emociona muito é que grande parte dos professores da rede municipal de Apucarana foram meus alunos, as diretoras também. Mais de 90% da rede foram meus alunos porque eu trabalhei a vida toda nos cursos de formação de professores. Ouço muito deles que eu sou um exemplo. Isso me dá mais responsabilidade por saber que tem tantas coisas que dependem do meu trabalho, mas também me fortalece muito. Sou muito agradecida por ser uma educadora no Brasil.

Se eu tivesse que escolher hoje novamente a minha profissão, eu escolheria ser professora e gestora na educação. Fazemos muito pelas pessoas. A educação tem uma pitada de ação social, acolhimento, empatia e conseguimos fazer isso.

Qual foi a maior lição que você aprendeu com os seus alunos?

Foi uma grande lição perceber que os grandes projetos que eu idealizei e coordenei só foram possíveis com a união de todos. Nunca fazemos nada sozinho. Mesmo hoje, na Autarquia de Educação, se cada um não fizer a sua parte não acontece. É a união que promove grandes resultados.

Você encontrou alguma resistência na Secretaria de Educação quando propôs essas mudanças?

Precisamos ir construindo um caminho porque, de certa forma, demos mais trabalho ao professor. A parceria precisou ser uma conquista ao longo dos anos. Colocar o professor como um debatedor de ideias e sugestões, e não um sujeito que recebe o material pronto. Como os professores vinham em outro ritmo de trabalho, precisamos ir construindo espaços.

Estamos criando uma geração de vencedores, porque essas crianças terão uma conscientização e serão adultos diferentes.

O que você diria aos educadores que desejam realizar mudanças em seus municípios, mas não sabem por onde começar?

Tudo parte de um diagnóstico, de você ter um entendimento de onde quer chegar. Compreender a educação que temos versus a educação que queremos. Quais os caminhos para chegar ali? É preciso ter isso claro. Metodologias, formas de trabalho e pessoas que estarão envolvidas. É necessário esse mapeamento da realidade que se tem para entender os desafios que deverão ser enfrentados para chegar lá. Às vezes, os caminhos serão maiores, se você não tiver as pessoas que você depende favoráveis. Mas acredite em qualquer transformação, sempre é possível.

Que outros setores do município são impactados pelo trabalho realizado na educação?

Impacta a sociedade como um todo. Fazemos trabalhos educativos com as crianças que promovem uma conscientização em relação à saúde. Trabalhamos também a educação financeira. A conscientização que as crianças incorporam é impressionante. Impactamos diretamente a saúde das crianças, impactamos financeiramente, porque a família não tem gasto com material escolar e nem com alimentação da criança, impacta na ação social. Durante a pandemia, distribuímos cestas básicas para as famílias atendidas pelo Bolsa Família e cestas de hortifruti para todas as famílias da rede básica de ensino que demonstraram interesse, cerca de nove mil. Dessa forma, também garantimos a continuidade de compra da agricultura familiar, o que ajuda na economia do município. Estamos criando uma geração de vencedores, porque essas crianças terão uma conscientização e serão adultos diferentes. Independente do que eles escolherem fazer, serão cidadãos críticos e conscientes do seu papel.

O que você espera para os próximos anos da educação em Apucarana?

Sempre tem mais para inovar. Tínhamos um projeto com a Universidade Federal do Paraná de trabalhar a tecnologia nas escolas ajudando o professor nas suas dificuldades. Nesse momento de pandemia esse projeto cresceu. Foram os alunos da universidade federal que nos deram suporte para fazer tão rápido todo esse processo. Temos muito a crescer no trabalho com tecnologia com as crianças. Acho que devemos continuar cuidando de toda essa estrutura para que os resultados permaneçam. O resultado do Ideb é importante, mas muito mais importante é saber que esse resultado flui naturalmente em um bem-estar de alunos, professores e funcionários nas escolas. Isso, para mim, vale muito mais do que a nota do Ideb. Sonho que possamos ter essa escola, com condições de bem-estar para todos que nela convivem.

Tem algo que você ainda não realizou na sua vida pessoal e gostaria de fazer?

Eu ainda quero escrever um livro sobre esse trabalho e colaborar mais com os municípios vizinhos de alguma forma, por meio da educação. Pessoalmente, me sinto muito realizada. Tive pais incríveis, que me deram muita estrutura e me ensinaram a agregar, herdei isso deles. Busquei primar pela qualidade do tempo com a minha família, já que a quantidade nem sempre me era permitida por conta do trabalho. Enquanto tiver fôlego de vida, posso fazer outras coisas, mas até onde cheguei me sinto muito realizada.

Jornalismo: Julia Sena