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“Embora ainda façamos uso de muitas tecnologias, a resolução dos casos ocorre de maneira menos fantasiosa, mas sempre pautada na ciência.”
Mateus de Castro Polastro, Segurança Pública (2020)

Mateus de Castro Polastro, Segurança Pública (2020)

Conheça Mateus de Castro Polastro, o perito da Polícia Federal responsável pela criação do NuDetective: um software capaz de identificar arquivos de pornografia infantil por meio de detecção de pele em imagens e vídeos. Idealizado inicialmente para automatizar as buscas da polícia e otimizar o tempo gasto nas investigações, Castro não imaginava que o programa ganharia visibilidade nacional e seria usado por diferentes instituições no Brasil e no mundo. O perito criminal pode não ter previsto o sucesso do software, mas desde novo já enxergava nos computadores o futuro.

Natural de Taubaté (SP), Castro já gostava de Ciências Exatas no colegial. A universidade na qual viria a estudar havia sido definida antes mesmo da escolha pelo curso. Pensou em prestar vestibular para Engenharia Civil ou Elétrica, mas optou pela Ciência da Computação após muitas conversas com o irmão, que já era profissional da área. Quando foi para a faculdade, em meados dos anos 90, a internet ainda estava começando a se popularizar no Brasil. Mesmo assim, Castro já enxergava a tecnologia como o futuro de diversos setores da sociedade. Formou-se na área pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fez mestrado posteriormente em Informática Forense e Segurança da Informação pela Universidade de Brasília (UnB).

A sua história na Polícia Federal começa dois anos antes de ingressar no mestrado, quando foi aprovado no concurso da instituição. Em 2008, uma mudança no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passou a considerar crime o armazenamento ou posse de material pornográfico envolvendo criança ou adolescente. Com a nova legislação, as buscas e apreensões se intensificaram, mas o tempo dedicado à análise de arquivos não dava conta do volume de material, já que todo o processo era realizado manualmente. Foi quando Castro enxergou uma oportunidade para otimizar o tempo no trabalho.

Com uma ideia na cabeça e um computador à mão, ele passou a dividir sua rotina entre o trabalho na Polícia Federal, a tese de mestrado, a construção de sua casa e a criação de um software. No fim, o esforço compensou. Em parceria com o colega Pedro Monteiro, Castro criou o NuDetective: um programa capaz de identificar arquivos de pornografia infantil em meio a milhares de outros registros de forma muito ágil, o que diminuiu drasticamente o tempo dos investigadores na análise dos materiais. A detecção acontece por meio da identificação de pele em fotos e vídeos, sendo a detecção em conteúdo audiovisual uma evolução do programa após a sua criação.

O projeto foi submetido a diversos artigos científicos, incluindo premiações nacionais e internacionais. A atuação no combate ao abuso sexual infantojuvenil levou Castro a ser convidado para escrever um capítulo do livro “Tratado de Computação Forense”, que também foi premiado. O impacto na vida profissional do perito criminal foi imenso, mas o legado deixado para o país foi ainda maior. O projeto mudou a forma como este tipo de crime é investigado no Brasil, auxiliando nas buscas e apreensões no cenário da segurança pública nacional, sem gerar nenhum gasto extra aos cofres públicos. A história de Mateus de Castro Polastro mostra que quando segurança e tecnologia caminham juntas é possível fazer a diferença mesmo com poucos recursos.

É uma forma de devolver o que a sociedade aplica em mim.

Mateus de Castro Polastro, Segurança Pública

Qual o maior desafio de se trabalhar na Polícia Federal?

A Polícia Federal tem muitas atribuições e por isso temos muita variedade e quantidade de trabalho. Especificamente na área de crimes cibernéticos, que é a minha atuação principal, atualmente os vestígios digitais estão relacionados direta ou indiretamente a diversos tipos de crimes, o que faz com que sejamos demandados dentro dos mais diversos cenários.

Além disso, na Polícia Federal trabalhamos com diversos assuntos sensíveis, como o combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes, que geram um desgaste psicológico muito grande.

Por fim, a Polícia Federal é uma instituição que detém bastante prestígio junto à população, então todos aqui devem sempre buscar dar o seu melhor para responder à altura a expectativa que a sociedade deposita em nosso trabalho.

Qual foi a principal motivação para otimizar o trabalho em crimes relacionados ao abuso sexual infantojuvenil?

Fui motivado por muitos trabalhos sobre isso. Em 2008, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) mudou e passou a ser crime a posse de material pornográfico envolvendo criança ou adolescente. Mas era difícil e demorado procurar milhões de arquivos em uma máquina. Um caso me fez ter a ideia de criar o software: a busca e apreensão em uma lan house contendo 15 computadores. Levou muito tempo para finalizar a busca. Foi quando pensei e busquei uma forma de automatizar a tarefa.

Quanto tempo você levou para a elaboração total do projeto NuDetective?

Não sei dizer ao certo, mas aproximadamente 6 meses para a versão funcional.

Como foi conciliar a carreira na polícia, com o mestrado, a vida pessoal e a construção do software NuDetective?

Foi realmente um desafio muito grande, pois todas essas frentes demandam bastante dedicação. O segredo foi manter a calma e não deixar que o estresse tomasse conta da situação. Busquei sempre gerenciar as situações com calma, organização e paciência. Logicamente, o apoio da minha esposa foi muito importante para que as coisas fluíssem de maneira mais branda nesse período, principalmente nos períodos em que eu viajava. Uma das alternativas que eu usei para minimizar o impacto dentro dessas áreas da minha vida foi dormir menos, fazendo parte do desenvolvimento do NuDetective quando todos em casa já estavam dormindo. Como eu sabia que era passageiro, foi possível conciliar.

Qual o maior desafio que você já enfrentou sendo perito criminal?

Você nunca fica na sua zona de conforto. O crime está sempre na frente e a polícia atrás. Não podemos parar, estou sempre estudando. O problema é a grande quantidade de dados.

Qual a importância de se levar este projeto para a comunidade acadêmica, através dos artigos científicos escritos por você?

O trabalho do perito criminal é feito pautado na ciência. Todo e qualquer trabalho que um perito desenvolve deve buscar ser imparcial, isento e equidistante das partes, e esse pensamento foi trazido para a validação do software NuDetective. Por ser um software projetado, desenvolvido e testado por peritos criminais federais, havia a necessidade de se buscar opiniões de pessoas com outras visões e culturas, assim como era importante colocar sob a análise de outros países. E o processo de avaliação de artigos científicos por bancas de congressos tem esse perfil, quando utilizam equipes multidisciplinares que fazem a chamada “double-blind peer review”, muito comum de ser aplicada para aceitação de artigos para publicação.

Outro ponto muito importante que levou à decisão de submeter artigos científicos para diversos congressos e revistas é o fato de que é uma ótima forma de divulgação, ou seja, muitas forças da lei ao redor do mundo poderiam conhecer a ferramenta e solicitar acesso, já que é distribuída de forma gratuita. Também não podemos esquecer que é uma forma de divulgar o nome da Polícia Federal ao mundo, bem como essa divulgação científica auxilia na evolução do estado-da-arte de ferramentas que auxiliam no combate ao abuso de crianças e adolescentes.

O uso dessa ferramenta em uma operação já levou a Polícia Federal a um caso ainda maior?

Há casos onde a pessoa é presa com um ou dois arquivos. Quando você analisa em laboratório, vê que tem outras pessoas envolvidas. Tem gente que só “consome” e a ferramenta já nos levou até os abusadores.

Embora ainda façamos uso de muitas tecnologias, a resolução dos casos ocorre de maneira menos fantasiosa, mas sempre pautada na ciência.

Qual foi o caso que mais te chocou?

O que mais choca é quando você identifica que o abusador estava ali bem próximo da vítima. Tem casos em que vamos em condomínios fazer busca e apreensão e notamos o espanto dos vizinhos porque a pessoa nunca gerou nenhum tipo de desconfiança.

Como o software NuDetective auxilia outros órgãos governamentais?

O NuDetective tem como principal objetivo auxiliar na busca por arquivos de abuso de crianças e adolescentes em mídias de armazenamento computacional como pen drives, DVDs e computadores. Assim, ele possibilita a prisão da pessoa que está de posse desses arquivos, ainda no momento da busca e apreensão. E essa atividade não é exclusiva da Polícia Federal, pois também é uma realidade, por exemplo, de diversas polícias civis, polícias científicas ou institutos de criminalística estaduais. A ferramenta também é utilizada por diversos pesquisadores em universidades, o que contribui para que ela seja analisada e comparada a outras técnicas e ferramentas em estudo, permitindo com que o estado-da-arte avance.

É importante ressaltar que ela supre uma lacuna sem que haja a necessidade de se despender altos investimentos, seja para comprar uma ferramenta comercial eventualmente existente ou mesmo bancar o desenvolvimento de uma.

Como seus filhos enxergam o seu trabalho?

Minha filha tem 14 anos e meu filho 17. Eles sabem o que eu faço, às vezes eu apareço na TV e tudo mais, ficam felizes, mas querem seguir carreiras distintas. Minha filha quer ser médica e meu filho quer cursar Relações Internacionais.

De que forma seu trabalho impacta na sua relação com seus filhos?

Acabo tendo uma preocupação grande quando o assunto é eles confiarem em uma pessoa. Peço para tomarem cuidado e ficarem sempre alertas. Procuro deixar claro os perigos e tentar alertar como pai.

Qual a parte mais difícil de se trabalhar no combate de crimes envolvendo crianças e adolescentes?

A separação da vida pessoal e profissional. Às vezes vejo vítimas com a idade da minha filha. Uma das coisas importantes da ferramenta é evitar o contato com as fotos porque isso faz muito mal.

O que mais te ajuda a recarregar as energias que o trabalho demanda?

Temos que saber separar muito as coisas, se não saímos do lugar. Se você se abalar não consegue combater. O que mais me ajuda são meus amigos, familiares e a prática de esportes, principalmente corrida e basquete.

Qual o papel das redes sociais quando se fala em crimes de pornografia infanto-juvenil?

Com a difusão do uso de smartphones, o acesso à Internet ficou bastante facilitado e o controle por parte dos pais ficou mais difícil. Antigamente a dica que davam para os pais era manter o computador da casa em local visível para que os pais pudessem acompanhar, mesmo que à distância, o que seus filhos estavam fazendo no computador. Já os smartphones podem ser levados pelas crianças a qualquer lugar e isso é um dos fatores que aumentou o risco de abordagens de pedófilos. O fato de a Internet permitir um certo anonimato e de facilitar a abordagem mesmo estando fisicamente distantes é um risco para as crianças e os pais devem acompanhar e, principalmente, conversar e explicar os riscos inerentes ao uso dessas tecnologias.

A ferramenta supre uma lacuna sem que haja a necessidade de se despender altos investimentos.

Qual o impacto do seu trabalho na polícia brasileira?

Bastante positivo. Não faço para aparecer, faço para ajudar quem precisa. É uma forma de devolver o que a sociedade aplica em mim. A troca de conhecimento é fundamental, assim todos crescem juntos. Precisamos motivar o outro para fazer o mesmo.

O que as pessoas não sabem sobre a sua profissão e você gostaria que elas soubessem?

Todos os peritos da Polícia Federal, não importando se sua especialização é informática, química, engenharia civil, contabilidade ou qualquer outra, passam por um rigoroso treinamento na Academia Nacional de Polícia onde nos especializamos em diversas áreas da perícia que chamamos de “clínica geral”. Assim, todos os peritos devem estar preparados para realizar perícias de constatação de drogas, locais de crime, acidentes de tráfego, balística, veículos, entre diversas outras.

Outro ponto interessante de ressaltar é com relação à visão que recentes séries de TV trouxeram do dia a dia do trabalho de um perito. Nessas séries os casos são resolvidos quase que de maneira mágica, muitas vezes com tecnologias, técnicas e informações que não estão disponíveis. Embora ainda façamos uso de muitas tecnologias, a resolução dos casos ocorre de maneira menos fantasiosa, mas sempre pautada na ciência.

A criação desse software te motiva a desenvolver outros projetos para a Polícia Federal?

Com certeza o desenvolvimento do NuDetective foi um marco em minha carreira dentro da PF. O caminho que ele trilhou me mostrou que é possível se desenvolver tecnologia de ponta mesmo com todas as dificuldades que temos, como a falta de pessoal e algumas vezes de equipamentos e treinamentos.

Uma das coisas mais importantes que eu tiro do projeto NuDetective e que pode ser levada a outros é que devemos fazer as coisas sem pensar em reconhecimento. Foi assim que o NuDetective nasceu e se mantém até hoje, embora ele tenha tido diversos reconhecimentos ao longo de sua história. Qualquer projeto que eu já iniciei e que irei iniciar levarei esse lema como parte integrante, pois assim a gente evita frustrações desnecessárias e foca no objetivo do projeto, que nunca deve ser o reconhecimento. E com essa forma de pensar outros projetos vieram e virão dentro da PF, pois necessidade e motivação não me faltam.

Que outras tecnologias têm auxiliado a Polícia Federal no combate a crimes virtuais?

A Polícia Federal tem um quadro de funcionários altamente qualificados e que é capaz de criar tecnologias de ponta. Um exemplo é a ferramenta forense IPED (Indexador e Processador de Evidências Digitais), criada por peritos criminais federais para processamento e análise de evidências digitais como computadores, pen drives e celulares. É uma ferramenta de código aberto e amplamente usada pela comunidade forense mundial.

Outro exemplo é a ferramenta forense “Peritus”, também idealizada por peritos e que possibilita a análise de evidências multimídia como conteúdo de vídeo, comparação facial, verificação de edição e fotogrametria forense. Enfim, os crimes cibernéticos são muito dinâmicos e muitas vezes a própria indústria não consegue acompanhar suas mudanças e trazer produtos de prateleira às forças policiais e, por isso, muitas vezes, a polícia tem que criar seus meios de investigar, processar, analisar e rastrear os vestígios que são deixados.

Jornalismo: Julia Sena