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“Eu não olho só o solo, eu olho as pessoas envolvidas ali.”
Maria Sonia, Meio Ambiente

Maria Sonia Lopes da Silva, Meio Ambiente (2020)

Conheça a vencedora Maria Sonia Lopes da Silva, idealizadora do projeto ZonBarragem, que tem facilitado o abastecimento de água no Semiárido de Alagoas. O trabalho, realizado a partir do mapeamento de áreas com potencial para construção de barragens subterrâneas, virou base para políticas públicas empregadas no estado. Mas o programa que hoje ajuda diversas famílias da região, é fruto da experiência de quem conhece e superou a pobreza, a fome e a seca no sertão do país. Maria Sonia Silva transformou a escassez de água que viveu quando ainda era criança no fio condutor do seu projeto, buscando mitigar para seus conterrâneos problemas que enfrentou de perto.

Nascida em Maceió, Alagoas, Maria Sonia morava em frente ao Mutange, estádio do seu time do coração, o CSA. A grandeza do estádio, que já foi considerado o mais moderno do estado, contrasta-se com casas como a de Maria Sonia: feitas de taipa, com camas de campanha e sem abastecimento hídrico. Ao lado dos cinco irmãos, ela cresceu ajudando os pais desde muito nova, fosse buscando água no rio ou trabalhando à noite encerando o chão de outras casas com a família.

A vida se tornava mais leve no Natal, única época do ano em que tinha na mesa doce de banana, bolo e refrigerante. A data se tornou o momento em que era possível afastar a fome, sensação que conhecia com certa frequência. Não foram raras as vezes em que Silva adormeceu com fraqueza no corpo ou vendo sua mãe chorar. A mistura de café com farinha era o que a família geralmente compartilhava nas refeições. Se na escola os amigos rejeitavam o leite com farinha oferecido na merenda por ojeriza ao sabor, ela e os irmãos se deliciavam com a bebida. Às vezes, aquela era a única refeição possível. Os pais, que concluíram apenas a 4ª série, nunca abriram mão do ensino dos filhos. Para a alagoana, os estudos ofereciam uma possibilidade de mudança a nível geracional.

Após dois anos tentando ser aprovada no vestibular para Arquitetura, ouviu o conselho de um professor para cursar Agronomia. O curso estava ainda mais concorrido que o anterior no ano em que decidiu arriscar, mas o nervosismo foi tamanho que marcou a opção, sem crença alguma de que seria aprovada. No dia do resultado, foi para a praça central da cidade, onde anunciavam a classificação, junto de sua irmã. Quando ouviu seu nome ser chamado, emocionou-se tanto quanto o pai, que acompanhava tudo pelo radinho de pilhas. Ao retornar para casa, a rua estava em festa. Ali, Maria Sonia abriu o caminho para muitos que sonhavam com o ingresso no ensino superior.

Aos 23 anos, começou sua trajetória na Universidade Federal de Alagoas, mesmo sabendo que não seria nada fácil. Durante a graduação, descobriu-se pesquisadora e foi monitora nas disciplinas relacionadas ao estudo do solo. Com esforço e ajuda de uma grande rede de apoio, no dia 28 de setembro de 1984 tornou-se engenheira agrônoma. Na defesa da monografia, um dos professores da banca sugeriu que fizesse a prova de mestrado para a Federal de Pernambuco. Novamente seguiu o conselho e em 1989 era mestre. No mesmo ano, fez diversos concursos para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Foi aprovada em três deles e optou pela cidade de Petrolina para iniciar sua jornada. Após 17 anos de serviço público, mudou de núcleo dentro da instituição e foi para a unidade de Recife, onde passou a integrar a Embrapa Solos. Esta foi a oportunidade que faltava para que Maria Sonia pudesse unir as pesquisas que desenvolveu na graduação e no mestrado com os projetos feitos na Embrapa.

Sua trajetória pessoal foi fundamental para envolver no trabalho não só o solo, mas as pessoas. O agricultor passou a integrar os estudos e se tornou peça-chave na implantação das tecnologias hídricas no Semiárido brasileiro. Hoje, muitas pessoas que vivem em regiões rurais com escassez de água são beneficiadas pelo ZonBarragem. O projeto tornou-se política pública em Alagoas, sua terra natal, que prevê a construção de 200 barragens e deve auxiliar cerca de mil pessoas. As pesquisas têm auxiliado diferentes esferas de governos nordestinos a levar qualidade de vida para a população. Maria Sonia Lopes da Silva entrega ao seu estado aquilo que não pôde desfrutar na juventude e proporciona mais do que um direito básico garantido na Constituição, ela promove dignidade.

Maria Sonia Lopes da Silva, Meio Ambiente

Eu não olho só o solo, eu olho as pessoas envolvidas ali.

Como foi agregar o estudo dos solos às tecnologias sociais hídricas?

Uni forças com os colegas da unidade [de Recife]. Agreguei o conhecimento profundo de solo deles com o meu olhar mais sensível. O pessoal só via a barragem subterrânea como uma tecnologia social hídrica para armazenar água da chuva, mas não tinham a sensibilidade de ver que não é todo solo que é bom para barragem subterrânea.

A equipe de Recife é de especialistas em solo, eu pensei “por que vou ficar sozinha e não vou juntar a equipe solo e água?”, e aí fizemos esse belo casamento da equipe do solo com a equipe das tecnologias sociais hídricas, formada pela Embrapa e por parceiros da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), o governo municipal e estadual. De 2007 para cá, o solo foi reconhecido como fundamental para a eficiência das tecnologias sociais hídricas.

A equipe só olhava a coisa física, de entrar no perfil do solo, avaliar e pronto. Eu não olho só o solo, eu olho as pessoas envolvidas ali. Você tem que ver os benefícios, a dignidade e a autonomia que isso está causando às famílias. Isso não foi só o meu olhar, mas também dos parceiros. Meu olhar ficou mais voltado para a agroecologia com uma bolsista que eu tive da Agronomia. Ela me ensinou a olhar a vida em cima do solo, e essa vida é muito importante. Hoje, a nossa equipe não trabalha sem olhar o tripé: social, ambiental e econômico. Para os meus agricultores, eles são que nem meu pai. Eles não querem saber se vão vender o coentro, o tomate e a cenoura. Eles não querem saber se vão ter lucro, eles querem estar alimentados e os seus vizinhos também. É a prática da economia solidária. Aí é onde está a vida.

A barragem subterrânea, que é a que eu trabalho, está transformando vidas no Semiárido, está dando autonomia e dignidade para as pessoas que viviam em vulnerabilidade social. Foram 10 anos de seca, com chuva abaixo da média, e ninguém viu saqueamento. As tecnologias sociais hídricas estão transformando a vida dos agricultores. Não é só ensinar a fazer barragem subterrânea, é um trabalho dignificante.

Qual foi a parte mais difícil de desenvolver esse projeto?

A parte mais difícil foi confrontar o que foi realizado em laboratório com a realidade nas comunidades. Outra parte que também carece de muita articulação foi o envolvimento de parceiros técnicos locais na construção do projeto, principalmente com a Articulação Semiárido Brasileiro – ASA Brasil, bem como com as agências de fomento à pesquisa.

Um outro fator que devo mencionar são os deslocamentos, pois o nosso trabalho com Barragem Subterrânea nos faz percorrer grandes distâncias em todo o Semiárido Nordestino (dos dez estados que compõe o Semiárido nós atuamos em sete destes, a saber: Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí) e muitas vezes permanecemos vários dias em campo, atravessando estradas ruins e perigosas e hospedagens não muito confortáveis. Mas o prazer do contato com as agricultoras e agricultores me faz esquecer todas as adversidades.

Quais programas de políticas públicas foram auxiliados com a sua pesquisa?

A pesquisa desenvolvida pela Embrapa e parceiros têm colaborado em Programas de políticas públicas, nas esferas federais e estaduais, a exemplo dos recentes Fome Zero, Água para Todos, Brasil Sem Miséria, Programa uma Terra Duas Águas, AgroNordeste, Programa Barragens Subterrâneas no Estado de Alagoas e já vem colaborando com um novo programa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a ser lançado em 2021, o Águas do Agro.

Quantas famílias já foram beneficiadas por esse projeto?

A conta é o número de barragens construídas. Pegamos o resultado e multiplicamos por cinco, porque é o número de pessoas que atende bem. Temos mil e quatrocentas barragens, o que dá cerca de sete mil pessoas beneficiadas. É um número significativo porque não é só a barragem que importa. Você precisa ter a cisterna para o homem ter água para beber. Você ouvir a pessoa dizer que hoje planta o que come, onde antes não tinha nada, é muito gratificante.

Você ouvir a pessoa dizer que hoje planta o que come, onde antes não tinha nada, é muito gratificante.

De que forma ter crescido em uma região tão precária ajuda o trabalho que você desenvolve hoje?

De muitas formas. Eu sei o que é passar fome, eu sei o que é passar frio e eu sei o desrespeito que existe com isso. Hoje, quando eu chego em uma comunidade carente, eu me esforço para ajudar eles a produzirem seus alimentos e terem qualidade de vida. Isso me ensina a ter respeito e admiração. Da minha equipe, a maioria teve infância pobre, então nunca chegamos de salto alto. É gratificante desenvolver esse trabalho e estar com essa equipe maravilhosa, de pessoas capacitadas e que respeitam e amam meus agricultores.

Qual a importância da pesquisa no Brasil?

As nossas pesquisas desenvolvidas têm gerado ou adaptado diferentes soluções tecnológicas de captação e estocagem de água de chuva para diferentes usos no meio rural do Semiárido brasileiro. O papel que a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação vêm desempenhando na região e seus impactos positivos foram observados, principalmente, na última seca, que ocorreu de 2009 a 2019, quando se constatou notória resiliência das famílias agricultoras e seus agros ecossistemas no enfrentamento desse fenômeno em comparação às secas anteriores.

Estas pesquisas têm contribuído para a construção de um “novo” Semiárido, cheio de potencialidades, e num espaço de diálogos e convivência, a partir do respeito aos conhecimentos locais e à cultura do povo sertanejo. Deixo aqui meu apelo aos governantes para que não cortem as verbas para as pesquisas as famílias difusas do Semiárido necessitam da volta dos programas de políticas públicas de convivência com a escassez de água na região, que atenda suas necessidades, que possibilite os vários usos da água e que valorize a sabedoria, as experiências e o protagonismo desse povo.

O que você aprendeu de mais valioso com o serviço público?

Como serviço público, temos a chance de fazer mais e melhor pela sociedade que paga nosso salário. Com o serviço público, aprendi que temos a obrigação de estudar, de pesquisar soluções tecnológicas para contribuir para que cada cidadã e cidadão tenha direito a uma vida digna, com respeito e autonomia. Com qualidade e com direito à segurança alimentar e nutricional; a um ambiente sustentável, para que as pessoas vivam com saúde, assegurando vidas saudáveis para as gerações futuras.

A uma economia viável, para que possam ter a certeza de que no dia seguinte terão garantia de alimentos à mesa para suas famílias, assim como a bens de consumo e lazer. À cultura e à educação, para que todas e todos tenham direito ao saber, ao conhecimento da sua história, para que possam fazer suas escolhas e se tornarem seres independentes, pensantes, sem dever favor a nada ou a ninguém. Institucionalmente falando, aprendi que enquanto serviço público, devemos contribuir com os gestores para que tenham consciência de que vieram do povo e que é para trabalhar em prol do povo, em prol da sociedade, que ali estão. Que enquanto serviço público devemos ter um olhar para o coletivo e um diálogo para a construção de um planeta onde todas e todos tenham direito iguais.

Você se lembra de alguma história marcante trabalhando na Embrapa Solo?

Até hoje me emociono quando lembro das palavras de Dona Maria do Socorro, do Sítio Pilãozinho, em Serra Talhada, Pernambuco, numa de nossas visitas. Ela com lágrimas nos olhos disse:

“Depois que colocaram estas tecnologias aqui no sítio, terminei de criar meus filhos sem fome e meus netos não sabem o que é acordar e não ter o que comer. Não tenho mais a saúde de antes para ajudar Manoel, mas temos a barragem subterrânea onde produz capim para dar de comer aos bodes, as poucas cabeças de gado que temos, os porcos e as galinhas. Depois da barragem subterrânea, temos sempre capim para dar de comer aos animais. Com a venda dos bichinhos, tiramos o sustento da minha família”.

É muito gratificante ajudar a transformar vidas de pessoas como a de Dona Maria do Socorro de Pilãozinho!

Para você, qual é a importância da agricultura familiar no Semiárido?

Tem uma publicação que diz que 78% da alimentação dos brasileiros vem da agricultura familiar. Dessas, mais de 50% são do Semiárido. Acho que isso já diz tudo. A agricultura familiar coloca o alimento saudável e natural na nossa mesa. A agricultura familiar é o significado de luta, resistência, alimento limpo e saudável. É saúde para a família, para o solo e para a água.

Você acha que o problema da seca pode ser resolvido em definitivo no Brasil?

Não, porque a seca é um fenômeno natural, ninguém pode acabar com a seca. Ninguém acaba com os fenômenos da neve, da geada, dos tufões, igualmente é a seca. O que nós podemos é aprender a conviver com a seca, e é isso que a Embrapa e parceiros coletivamente com as agricultoras e agricultores vêm fazendo a quase 50 anos. A eficiência produtiva para melhor convívio com regiões suscetíveis às estiagens depende de uma série de medidas de monitoramento e mitigação dos efeitos negativos desse fenômeno, através do uso racional e sustentável dos recursos hídricos (água), edáficos (solo) e da biodiversidade. É fundamental que as políticas de governo garantam às famílias agricultoras direito à terra com tamanho e qualidade suficientes para seus sustentos, com acesso à água para a produção de alimentos, consumo humano e dessedentação animal.

Entendemos que para se conviver harmonicamente nesse ambiente é preciso, cada vez mais, trabalhar com plantas mais resistentes (buscar inclusive opções entre espécies nativas), animais mais rústicos ainda que menos produtivos, além de se buscar uma harmonia com o ambiente em que se vive. Outra questão crucial para a convivência é a efetiva presença dos agentes de desenvolvimento rural construindo com às famílias as melhores soluções para um Semiárido, de forma a promover a troca de saberes que muito tem contribuído com os avanços no uso adequado dos recursos naturais, com vistas a captação, a estocagem e o uso múltiplo da água de chuva.

O que você acha que as pessoas não sabem sobre essa região e deveriam saber?

O povo não conhece o Semiárido e a riqueza dessa região. Só conhecem a pobreza, a fome e desnutrição. Um total desconhecimento. O Semiárido é uma região com alta potencialidade, rico em diálogo e convivência. O diálogo e a convivência geram resiliência, que está atrelada à potencialidade. A caatinga é rica em fauna e flora. O povo acha que é só o mato esturricando e não é. Estamos tentando mudar essa imagem. Tudo o que acontece hoje é resultado das pesquisas e desenvolvimentos feitos ali. Lutamos para não ter mais famílias morrendo e passando fome. A música que é o lema da minha vida e está na minha tese de doutorado é Esquinas, do Djavan, e ela diz “sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar. Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar”. Quando criança, eu diante da lanchonete vendo os salgadinhos, morria de sede em frente ao mar. A minha história se confunde com a dos meus agricultores.

Qual o seu maior sonho hoje?

Ter saúde para continuar contribuindo para essas famílias. O que se fez é muito, mas ainda é muito pouco para a dimensão dos agricultores familiares. O que eu gostaria de ver é um mundo mais igual, sem fome e miséria, onde as pessoas sejam vistas com igualdade e respeito. Talvez seja uma utopia que eu não alcance, mas quem sabe nossas gerações futuras.

O que se fez é muito, mas ainda é muito pouco para a dimensão dos agricultores familiares.

Jornalismo: Julia Sena