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“A disponibilidade do Estado em meios digitais é uma tendência internacional necessária, que não tem como não ser feita.”
Luanna Roncaratti, Governo Digital (2020)

Luanna Roncaratti, Governo Digital (2020)

Conheça a vencedora Luanna Roncaratti, coordenadora geral de Pesquisa com Usuários na Secretaria de Governo Digital. Desde 2018, ela e sua equipe garantem que pessoas de diferentes contextos do país consigam utilizar de maneira fácil as plataformas governamentais. Mais de 40 serviços já foram melhorados, o que têm contribuído para diminuir a exposição de milhões de brasileiros ao novo coronavírus. Apesar de estar a pouco tempo na Secretaria de Governo Digital, seu vínculo com o serviço público existe desde a infância.

Natural de Brasília (DF), Roncaratti é neta de um dos primeiros médicos da capital, que foi para a cidade antes mesmo dela existir. Lá, seus pais se conheceram e ela passou a ter contato com o serviço público desde a infância, graças à mãe servidora de carreira. A educação de qualidade sempre esteve garantida à jovem, mas junto dela vinha o olhar para a responsabilidade social. Aluna dedicada, não demorou para que se interessasse pelos livros do avô, entusiasta de grandes filósofos.

As obras despertaram uma vontade de saber mais sobre questões sociais e, por este motivo, Roncaratti decidiu entrar no curso de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). Depois da faculdade, quando cursava o mestrado, Roncaratti pensou até em trabalhar em países afetados por guerras, mas recebeu a notícia de que havia sido aprovada em um concurso na área de Políticas Públicas e Gestão Governamental. Começa aí a sua trajetória no funcionalismo.

Assim que ingressou na carreira de servidora, foi trabalhar como analista de Políticas Públicas no Semiárido brasileiro, onde ficou por cinco anos. A oportunidade permitiu que Roncaratti coordenasse diversos programas e conhecesse realidades que nunca tivera contato antes. A experiência na região deu-lhe bagagem profissional para atuar em outras instituições importantes do país, como a Escola Nacional de Administração Pública e o Ministério de Ciência e Tecnologia.

Tornou-se doutora em Ciência Política e, durante sua passagem pela extinta Secretaria de Política de Informática, aprendeu muito sobre internet e tecnologia digital. Foi a partir dessa experiência que Roncaratti descobriu o potencial da tecnologia para transformar vidas e passou a olhar o universo digital com outros olhos. Encantada pela área, desde 2016 faz parte da equipe que iniciou a transformação digital nos órgãos governamentais. A sua ampla trajetória no serviço público, conhecendo as realidades diversas do país, foi o que fez a diferença para a cientista política enfrentar os desafios da Secretaria de Governo Digital.

Roncaratti faz parte da equipe que passou a fazer pesquisas com usuários para implementar a transformação digital. O objetivo era entender as principais demandas do cidadão, melhorar os serviços e garantir acesso ao maior número possível de pessoas. Projetos como a otimização na marcação de consultas online e o passe livre para pessoas de baixa renda foram um sucesso. Melhorar a relação Estado x cidadão foi fundamental para aproximar as pessoas, pensar a acessibilidade digital e tornar os serviços mais simples.

Ao longo de dois anos como Coordenadora-geral de Pesquisa com Usuário na Secretaria de Governo Digital, juntamente com os demais profissionais públicos da equipe, já foram realizados 52 projetos de pesquisa, com a participação direta de cerca de 20 mil usuários. Para isso, a cientista política entendeu desde o início que para abraçar realidades tão diferentes e complexas, era necessária uma equipe diversa – com mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+, além de pais e mães com filhos pequenos. Só assim os resultados seriam pautados em uma escuta verdadeiramente ativa e um olhar atento aos problemas básicos do contexto digital brasileiro.

Luanna Roncaratti fez do serviço digital um importante aliado na garantia do amplo atendimento aos cidadãos – que foi essencial durante a pandemia. A trajetória de Roncaratti mostra que, quando a tecnologia vem acompanhada de um olhar humano e atento, tudo é possível. Afinal, as grandes mudanças acontecem na troca com o outro.

A disponibilidade do Estado em meios digitais é uma tendência internacional necessária, que não tem como não ser feita.

Luanna Roncaratti, Governo Digital (2020)

Qual o papel das pesquisas no desenvolvimento do seu trabalho?

Ter vivido os últimos anos basicamente ouvindo pessoas, no campo ou não, é uma experiência de vida humana muito significativa. Tudo que eu sempre quis fazer para entender o meu país, meu contexto e as pessoas que eu sirvo é muito transformador. Ouvir sugestões é uma abertura pessoal, de conexão humana, e profissionalmente percebemos que ajudamos muitos gestores que não tem condição de ir até a rua e perguntar às pessoas. Temos a sensação que conectamos duas pontes. Vem sendo uma experiência muito transformadora em termos profissionais, de contar com a confiança de outros gestores, deles verem esses resultados e das pessoas que participam.

Uma pesquisa do IBGE divulgada em abril de 2020 dá conta de que, em 2018, quase 46 milhões de brasileiros ainda não tinham acesso à internet. Quais as estratégias utilizadas para atingir essas pessoas e as dificuldades de se oferecer serviços digitais em um país tão desigual?

Hoje, só 75% das pessoas têm acesso à internet. O acesso hoje é considerado quase que um direito básico. É muito significativo pensar que ainda temos 25% das pessoas sem acesso. Das pessoas que têm acesso, muita gente acessa só pelo celular. O Brasil tem desafios que outros países não têm. Temos dificuldades econômicas e financeiras, mas também muitos desafios geográficos.
Existe também muita desigualdade no uso da internet. Para muitas pessoas, o uso é muito focado em rede social, uso básico. Mas essas pessoas usam WhatsApp, Facebook. O problema não é a tecnologia, é a maneira como incluímos as pessoas na tecnologia. Muita gente acha que o acesso à tecnologia tem a ver com condições econômicas, mas percebemos que tem mais a ver com questões geracionais. Precisamos pensar se o que estamos gerando como servidores públicos promove uma inclusão ou vai para o lado oposto.

Se 75% tem acesso, tiramos 75% do atendimento presencial e ajudamos quem não tem acesso. A disponibilidade do Estado em meios digitais é uma tendência internacional necessária, que não tem como não ser feita. Para o mundo de hoje, o Estado precisa ser digital também, mas não apenas digital. Não defendemos a substituição do digital em todos os canais, mas uma opção simples e barata caso o usuário queira usar.

Como a pandemia impactou nos serviços ofertados digitalmente?

A pandemia foi a prova de que a tecnologia pode ser usada muito a nosso favor. Temos alguns pontos simbólicos. Em 2019, fizemos muita pesquisa nos serviços públicos para trabalhadores, como o seguro desemprego, FGTS, carteira de trabalho etc.

Antes de a carteira digital ser lançada, ouvimos quase 500 trabalhadores. Uma coisa evidente de uma das dificuldades é que memória de celular é um custo para ter muitos aplicativos. O governo federal tinha muitos aplicativos para os serviços. Se você tem que ter muitos aplicativos, o Estado não está atendendo bem, porque isso é um custo.

Quando veio a pandemia, conseguiram rapidamente integrar o seguro desemprego na carteira digital e esse aplicativo passou a ser um dos mais baixados. O auxílio emergencial também. Se não fosse a tecnologia, como seria possível otimizar isso para as pessoas? A pandemia disseminou a relevância de um governo digital e pode humanizar relações.

Não defendemos a substituição do digital em todos os canais, mas uma opção simples e barata caso o usuário queira usar.

Como a diversidade da sua equipe influencia nos resultados finais do trabalho?

Eu comecei nova e passei por contextos muito masculinos. Depois do meu segundo filho, cheguei a conclusão que eu queria muito trabalhar com mães porque era sensacional ver mulheres combinando com o perfil e trazer esse olhar sensível para o trabalho. Para o que a minha equipe faz é muito importante esse olhar. Conversar com idosos, pessoas desempregadas e saber ouvir. Somos uma ponte entre quem vai resolver o problema e quem está com ele. Uma pessoa que ouvimos representa milhares no país em que vivemos.

Para ter essa troca, preciso de olhares diferentes. Mulheres, homens, LGBTQIA+, pessoas com filhos pequenos, filhos grandes e com formações diversas. O mais plural que eu tiver na equipe funciona bem, ajuda muito. A minha equipe inteira é de servidores públicos, o que não me permite abrir uma chamada para contratar uma pessoa com o perfil X, mas temos conseguido perfis muito diferentes e interessantes. Se trabalhamos para enxergar seres humanos, precisamos ter um ambiente muito humanizado para trabalhar bem.

De que forma você enxerga a relação de crianças e internet e como isso funciona na criação dos seus dois filhos?

É um tema na pandemia que eu não acho simples. Meus filhos tiveram aula pela internet esse período todo e o tempo deles de interação na tela aumentou muito. Os dois usam muito a tecnologia e eu fico muito preocupada, tentando limitar um pouco. Com o mais velho ainda tenho uma preocupação maior porque ele está começando a se interessar por redes sociais e conversamos muito com ele sobre isso, como a rede funciona. A rede pode ser muito boa, mas precisamos ter cuidado, então estabelecemos sempre um diálogo franco. Tentamos fazer com que eles tenham outros passatempos também. Por mais que a interação social esteja limitada, buscamos outras fontes de diversão que não seja nas telas. Eu sou uma otimista da tecnologia mas sei que há riscos.

A pandemia disseminou a relevância de um governo digital.

Quais foram os obstáculos enfrentados para assumir uma posição de liderança sendo uma mulher preta? Isso te exigiu muito da vida pessoal?

Não é simples, tem muitas questões. Eu acho que tem uma questão de gênero muito presente na nossa vida ainda. Eu preciso reconhecer todos os privilégios que eu tive e tenho, o primeiro deles foi vir de uma família estruturada e que fez o possível para me dar uma base educacional para ocupar os espaços que eu quisesse. Eu tomei boas decisões, mas eu consegui ter um apoio no começo da minha vida que foi de uma educação de qualidade.

Meu avô era negro e acredito que pelo momento de vida que ele viveu, ele provavelmente foi um dos primeiros médicos negros do Brasil. Ele teve uma atuação significativa profissional, de conseguir ocupar lugares. Minha mãe é negra, servidora pública e trabalha até hoje. Ela também ocupou espaços de referência.

Eu acho que a gente tem toda uma história e eu tenho uma história de ter tido alguns privilégios, que me deram segurança para fazer o que eu quisesse fazer. Mas é claro que há obstáculos. Eu sou uma mulher jovem e uma mulher negra. No Brasil, é muito difícil tratar dessas coisas. Eu tive que trabalhar muito mais, mesmo estando grávida e com um filho em casa doente. Mas trabalhar me faz muito feliz, dá sentido e significado na minha vida e na minha equipe. Mas a minha base me ajudou a passar por tudo isso.

Qual o seu maior sonho hoje?

Eu só consigo pensar que meu maior sonho é ver meus filhos crescerem com saúde e continuar trabalhando muito. Para mim, é uma honra muito grande ajudar a tornar o nosso país um pouco melhor, porque eu sei que isso é voltado para todos.

O que o serviço público te ensinou de mais valioso?

O maior valor que eu vejo hoje é o valor das pessoas. Por mais que estejamos falando do Estado, há um potencial muito grande de pessoas transformando as próprias vidas e as vidas de outras pessoas. Existe esse poder humano que temos e que será sempre inesgotável. Podemos passar pelas piores crises, mas como ser humano temos a chance de nos renovar e trabalhar por tempos melhores.

Jornalismo: Julia Sena