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“É na coletividade que reside a potência da transformação.”
Guilherme Almeida de Almeida, Governo Digital (2020)

Guilherme Almeida de Almeida, Governo Digital (2020)

Conheça Guilherme Almeida de Almeida, o advogado que apostou na construção coletiva para formular soluções necessárias às políticas públicas. Almeida foi um dos responsáveis pelo Marco Civil da Internet, iniciativa pioneira que abriu as portas para que outras leis contassem com a participação popular. Seu espírito público o levou a tornar-se um dos cofundadores do GNova (Laboratório de Inovação em Governo), que busca construir e experimentar novas formas de fazer políticas públicas com a participação das pessoas. O advogado fascinado por tecnologia desempenhou estes e tantos outros projetos guiado pela sua característica mais marcante: a curiosidade.

Natural de Curitiba, Paraná, Almeida era uma criança apaixonada pela leitura e por descobrir coisas novas. Ainda pequeno, brincava de desmontar o carrinho do irmão mais novo, retirar o motor e ver como funcionava. No final dos anos 80, ganhou seu primeiro computador, antes mesmo da internet se proliferar no país, e sua história de amor com a tecnologia teve início. Ao contrário de grande parte dos jovens, ele não sabia o que queria ser quando crescesse, mas acreditava que a faculdade seria um espaço para descobrir novos conhecimentos e explorar seus potenciais. Prestou o vestibular de Direito na Universidade de São Paulo e foi aprovado.

Ativo em diversas frentes da universidade, sentiu o quanto a coletividade em prol de um projeto pode impactar a realidade ao seu redor. Perto de se formar, foi convidado por uma de suas professoras para estagiar em um grande escritório de advocacia, na área de tecnologia. Se identificou com o nicho da profissão, ainda pouco explorado, e percebeu que poderia descobrir e criar muitas coisas. Começou a dar aulas, palestras e se tornou pesquisador na área, chegando a ir para a Grécia com bolsa parcial para apresentar um trabalho sobre o tema. Abriu um escritório com os amigos, com foco em tecnologia e entretenimento. Em 2007 começa a trabalhar para o governo, convidado para um cargo na Secretaria de Assuntos Estratégicos. Dois anos depois, assume um dos maiores desafios de sua carreira: a elaboração do Marco Civil da Internet.

Na época, a discussão sobre crimes da internet ganhava espaço e o governo decidiu que seria importante criar um projeto para discutir o que era feito na rede. Foi lançado um debate público em um blog, com um projeto de texto, onde cada comentário poderia ser comentado, algo revolucionário para o ano de 2009. A ideia era transformar o resultado da discussão em um projeto de lei, que permitisse um ecossistema para inovação no Brasil, ajudasse novas empresas de internet a se estabelecerem e coibir crimes na rede. Esse processo deu origem a vários outros debates, como classificação indicativa na internet, dados pessoais e Código de Processo Civil. O projeto que começou em 2009 foi para o Congresso em 2011, sendo aprovado somente em 2014, após o caso Snowden. No caso, o ex-técnico da CIA revela um esquema de espionagem da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, capaz de vigiar praticamente qualquer pessoa do planeta.

Durante o momento histórico para o país, Almeida viu o projeto ser aprovado de longe, enquanto realizava seu mestrado em Administração Pública na Columbia University, em Nova York. Retornou do mestrado com a certeza de que alocar pessoas e recursos de forma estratégica é fundamental para que a mudança aconteça. Migrou do Direito para a gestão e decidiu criar organizações inovadoras e colaborativas, com foco nos cidadãos. Viveu diferentes desafios de planejamento estratégico e inovação até criar o GNova (Laboratório de Inovação em Governo). O GNova surge como um espaço de desenvolvimento de soluções para o serviço público, onde o foco é entender as reais necessidades da população e pensar formas inovadoras de fazer políticas públicas com as pessoas.

Em 2019 o GNova lançou a Plataforma Desafios, onde a sociedade civil apresenta soluções para problemas públicos específicos e as melhores iniciativas são premiadas. A plataforma recebeu mais de 600 propostas de solução para diminuir os efeitos da pandemia de Covid-19 e arrecadou mais de dois milhões de reais de parceiros do governo para premiar as iniciativas. Guilherme Almeida de Almeida une há anos tecnologia e inovação a favor de políticas públicas, mas acredita que a verdadeira mudança acontece quando pessoas deixam de ser parte do processo para se tornarem o todo. É na coletividade que reside a potência da transformação.

É na coletividade que reside a potência da transformação.

Guilherme Almeida de Almeida, Governo Digital (2020)

O que você acha que ainda falta na legislação sobre internet no Brasil?

Acho que temos um novo contexto no qual temos grandes corporações, maiores do que países. A gente começa a lidar com contexto de transnacional, de relação de pessoas de diferentes países, onde surge o ator que ninguém imaginava, que tem poder de país. Países dependem dessa empresa. Junto com isso, surge uma fronteira que começa a ser mais intensa, que é a inteligência artificial. Como empregaremos a inteligência artificial nessa legislação? O poder de construção por meio do algoritmo é tão grande, que conseguir olhar pra ele com atenção, respeito e uma visão progressista,que não tenha medo da ciência, mas não seja ofuscado por ela, é um desafio que todos estão passando em velocidades diferentes. O desafio de uma sociedade da informação depende muito disso. E é importante que se promova o comércio, mas não destrua o humano nesse processo.

Se o Marco Civil da Internet fosse feito agora, o que seria acrescentado ou modificado?

Considerando que ele foi construído a partir do que as pessoas falaram, talvez as pessoas falassem coisas diferentes. Tem atividades onde queremos passar por um processo democrático e saber a vontade da maioria. Esse é um processo deliberativo, onde conseguir contar é importante. Mas tem atividades que não necessariamente temos a resposta e queremos construir a solução. Pessoas têm conhecimentos e visões diferentes e essas diferenças de visão vão trazer elementos para fazer uma coisa nova, um processo de colaboração.

O processo do Marco Civil foi colaborativo, onde várias vozes se juntaram e deram ao governo visões diferentes e complementares que pudessem sugerir um texto levando aquilo em consideração. Eu deixei de ser a pessoa que escrevia o papel para levarem para Brasília e passei a ser a pessoa que recebia o papel lá. Talvez precisássemos criar uma nova ferramenta de deliberação e escuta.
Eu tentaria fazer um processo mais racional de deliberação, mais para grande debate e validação com especialista do que hashtag. É bem possível também que tivesse uma nova camada de regulamentos e uma camada que não estivesse madura o bastante. Talvez responsabilidade dos intermediários globais ganhasse um capítulo e regulação da inteligência artificial ganhasse diretrizes para experimentarmos com mais flexibilidade. Eu tentaria colocar essa lógica de experimentação rápida.

O que fez você querer investir em projetos que contem com a participação colaborativa da sociedade na elaboração deles?

Do povo, pelo povo, para o povo. Temos um desafio de fazer a democracia funcionar de fato. Conseguir fazer com que a tecnologia seja uma aliada da inclusão e da democracia parte de construir o planeta que queremos para o século XXI. Não dá para esquecermos que o planeta é feito de pessoas que tem suas vontades e suas vozes. Se criamos tempos atrás jeitos dessas vozes serem ouvidas, como o sistema eleitoral, as repúblicas, a democracia começou a trazer novas ferramentas e poderes para que isso seja cada vez mais próximo do cidadão, que seja construído em conjunto.

A primeira impressão é que a democracia trouxe paridade de força. Sentimos muito isso nos comentários do blog sobre o Marco Civil da Internet. Percebemos que a partir do momento que garantíssemos o acesso, poderíamos nivelar o jogo e evitar disparidade, resgatar a conexão com as pessoas e o processo de construção de solução com elas. Viemos descobrindo que na redução de desigualdades, algumas desigualdades voltam. Seja por meio de robôs, controle de mídias etc. Não adianta fazer algo para alguém sem ouvir aquela pessoa. Se o papel do governo é resolver problemas, só vamos descobrir quais são os problemas certos e as melhores soluções se ouvirmos as pessoas. Não adianta querer presumir o conhecimento. Em políticas públicas não existe uma resposta certa, existem respostas possíveis com prejuízos e benefícios. Você só vai saber quais são eles quando ouvir as pessoas.

Quando eu voltei, a ideia era fazer isso de um jeito mais intenso, trazer as pessoas para o dia a dia da política pública e não só a lei. A lei é a materialização disso, mas não é a realização. É o norte que regulamenta isso, mas não é o jeito que as coisas acontecem.

Eu saí da faculdade de Direito para aprender que o Direito é dar ordens para o papel. Para dar certo de verdade, tem que ter gente fazendo. Essa foi a minha virada de carreira. Eu passei 4/5 anos ajudando a construir leis e decretos como se quiséssemos dar um rumo para o país. Eu desisti de tentar consertar o GPS para entender porque o carro não saía do lugar. O governo é uma máquina, um sistema em movimento. Tentar entender como o sistema funciona – para além do texto de uma norma ou decreto – e fazer a máquina andar foi a minha virada.

Conseguir fazer com que a tecnologia seja uma aliada da inclusão e da democracia parte de construir o planeta que queremos para o século XXI.

Por que você acha que ainda paira no imaginário das pessoas que a internet é uma terra sem lei?

Nos primórdios da internet, tinha um visionário chamado John Perry Barlow, letrista da banda Grateful Dead e pensador da internet. Ele escreveu a declaração de independência do ciberespaço. Os pioneiros da internet norte americanos tiveram uma visão um tanto romântica de que aquilo era uma nova terra descoberta e de que as regras do mundo externo não se aplicavam ao mundo de lá. Parte dessa visão inicial eu acho que deriva daí, de pensar em uma realidade alternativa. Até a linguagem, política ou tecnológica, tendeu em algum momento a funcionar por isso.

Acredito que isso levou a uma ação exagerada, no sentido contrário. Existiu um caso marcante na internet brasileira de quando o YouTube saiu do ar. A resposta para a terra sem lei pareceu ser excesso de lei. O Marco Civil tentou costurar, trazer esse equilíbrio, tanto que ele foi feito metade inspirado na Constituição Federal e a outra metade em um documento gestor na internet no Brasil, mas a sociedade é dinâmica. Então, seja para ir para um lado ou para o outro, esses movimentos continuam acontecendo.

Um dos elementos fortes do Marco Civil foi criar uma lógica de proteção de liberdade de expressão, em que o anonimato era permitido até o momento em que algum crime fosse cometido. Até lá você pode ser relativamente anônimo. Por definição, o direito regula o presente e o passado. Ele chega atrasado, quando os problemas já são outros. Por outro lado, isso não é de todo ruim.

Querer antecipar regulação é meter a internet em uma camisa de força. A internet é maravilhosa porque é generativa, ela é aberta para que as pessoas construam coisas nela e continuar aberta, para mim, é necessário. Mas cada vez que vão surgindo novos dilemas sociais fortes a discussão vai voltar.

Existe um problema grave em fazer lei. Nós fazemos a lei, a aprovamos e começa o experimento. E para mudar? Eu acho que estamos vivendo um momento na sociedade em que a evolução da internet vai fazer sempre com que novos exageros surjam, onde às vezes leis vão ser necessárias, às vezes não. Mas conseguir criar um meio de campo de experimentos e alternativas pode ser parte do caminho.

O Twitter já faz isso quando identifica que algumas contas estão postando conteúdo falso, como é o caso do ex-presidente Donald Trump. Levou um tempo para a empresa se sentir responsável ou corresponsável e encontrar um jeito de fazer isso que não suprimisse discurso, mas também não passasse o dano que uma informação mentirosa de uma pessoa poderosa pode gerar na humanidade. É necessário que esses ajustes passem por conseguirmos experimentar algumas coisas antes de regulamentar.

Se o papel do governo é resolver problemas, só vamos descobrir quais são os problemas certos e as melhores soluções se ouvirmos as pessoas.

Como é a sua relação com a internet no geral?

Eu sou uma pessoa bastante conectada, mas chegando aos 43 descobri que estou ficando para trás. Durante uma década e meia, qualquer novo serviço que tinha eu era o Gui Almeida nas redes. Quando chegou o Instagram, já existia um, e assim por diante. Às vezes eu enxergo os meus pais pedindo tutorial de como usar certas plataformas. Mesmo sendo alguém da internet e na internet, essa defasagem chega, mas tento estar em dia. Estranhamente, agora que voltei a programar estou me “desconectando” um pouco.

Qual a importância das pesquisas no trabalho que você desenvolve?

Temos um desafio muito grande em fazer com que academia, governo, setor empresarial e terceiro setor conversem e construam juntos. Para isso existe uma política de inovação que, entre idas e vindas, tem tentado enfrentar esse desafio e construir novas soluções. Pesquisar é essencial para entender a realidade. Conseguir acompanhar o que há de mais importante de pesquisa no mundo é essencial. Estar no diálogo com quem está na linha de frente é essencial também.

A velocidade do processo científico tem um tempo de maturação diferente e evolução que nem sempre é o tempo da política, políticas públicas ou de urgência dos problemas. Junto com a importância da pesquisa, estamos começando a explorar métodos ágeis para ela. Conseguir um processo de descoberta pautado por dados, mas também por uma descoberta qualitativa, diálogo com pessoas, grupos focais, ir a campo de verdade começam a completar e suprir lacunas dessas urgências. Ao mesmo tempo que pesquisa é essencial, há um desafio de agilidade que essas novas abordagens vão começando a atender.

Qual foi o seu principal desafio à frente do Laboratório de Inovação em Governo?

Tem um desafio que parece bobo, mas não é, que é o de explicar para as pessoas o que fazemos. É tão inusitado e tão diferente do propósito que às vezes as pessoas esperam um resultado diferente. Quando você procura alguém, geralmente você procura uma solução. O que nós damos não é solução, é um apoio para que você construa a solução com novas lentes. Conseguir desmontar essa expectativa é um desafio.

Um segundo desafio é fazer as pessoas embarcarem de verdade. Fazer as pessoas aceitarem que a transformação é necessária, e a transformação implica em não necessariamente continuar como estava antes, fazer gestão da mudança é um baita desafio.

Que outros setores governamentais são impactados com o seu trabalho?

Tem um trabalho de evangelização que envolve engajar pessoas para serem agentes da mudança. De saúde a pessoas desaparecidas, de gestão de orçamento à gestão de pessoas, isso vai nas entrelinhas. Gerar um clima no qual isso seja entendido como moderno, futuro, desejável e que valha a pena ouvir as pessoas e conectá-las é um golaço.

Qual a maior lição que você aprendeu no serviço público?

Eu acho que governo é gente fazendo coisa para gente, sendo liderado por gente e sendo atrapalhado por gente. No fundo, é sobre pessoas, no começo, no meio e no fim também. Perceber que são pessoas, que elas têm suas necessidades, temores, dificuldades etc, é essencial para conseguir fazer alguma coisa. O principal aprendizado é que é sobre pessoas, sobre gerir, conectar, capacitar, mobilizar e fazer pessoas enxergarem pessoas. Junto com isso, é da importância do propósito. Se você não percebe o porquê daquilo, pra que ou para quem, cada pessoa é no máximo uma engrenagem fazendo uma pequena tarefa de um sistema complexo. Você nega às pessoas do outro lado e se nega quando seu papel vem como o de uma engrenagem. Encontrar propósito é fazer o sistema virar pessoa e ganhar personalidade. Ao mesmo tempo em que é fundamental virar institucional e sistêmico, não pode fazer isso perdendo o humano que há em cada um, em todos os lados dessa bagunça toda, tão importante, incompreendida e necessária que é o serviço público.

Tem algum projeto no papel que você ainda não conseguiu realizar?

Tenho muita vontade de explorar o potencial, os limites e os cuidados necessários de inteligência artificial aplicada ao governo. Esse é um grande transformador e uma grande responsabilidade. Ainda estou tentando desmontar o carrinho. Talvez o meu próximo grande desafio seja pensar em um Centro aplicado para isso.

Também tem a Agenda Nacional de Inovação Pública, onde desejo fazer com que o óbvio vire o novo normal. Transformar o governo para que mais lugares funcionem desse jeito é um projeto de Estado que eu gostaria de ver acontecendo. Por último, eu também gostaria de trabalhar mais com linguagem simples. Conseguir ajudar governos a simplificarem o jeito que conversam com o cidadão. Já fizemos isso no laboratório, mas por tabela, sem um projeto específico. O governo não sabe conversar com as pessoas, não sabe explicar para as pessoas o que está acontecendo, o que faz e porque faz. Conseguir resolver esse dilema da linguagem é uma transformação gigantesca para uma sociedade mais justa e igual.

Jornalismo: Julia Sena