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“Não educamos só para a arte, tentamos educar para a vida.”
Flaviane Malaquias, Educação (2020)

Flaviane Malaquias, Educação (2020)

Conheça a vencedora Flaviane Malaquias, professora em Uberlândia, Minas Gerais, que usa a arte como ferramenta para promover mudanças na vida de crianças e adolescentes. A partir de dois projetos desenvolvidos com turmas de uma escola municipal, Malaquias faz com que os jovens repensem atos de violência, discriminação e trabalhem suas ansiedades. Seu trabalho estimula o contato com a arte desde cedo, assim como foi em sua trajetória.

Nascida em Uberaba, Minas Gerais, Malaquias cresceu estudando em escola pública e compreendendo a educação como um importante caminho a ser percorrido. Vinda de uma família humilde, sua mãe trabalhava como costureira e empregada doméstica e só pôde estudar até o ensino fundamental. O pai, mecânico, era um grande entusiasta de suas ideias. Foi por meio dele que ela e o irmão herdaram o gosto pelas artes.

Aos 10 anos, foi matriculada em seu primeiro curso de pintura, oferecido pela Prefeitura de Uberaba. Como não tinha dinheiro para comprar as tintas necessárias, fazia arte com uma mistura de terra e cola. Com apenas 12 anos, Malaquias perdeu seu pai, mas nunca esqueceu a persistência dele para que os filhos fossem longe. O seu investimento e incentivo foram essenciais para impulsioná-la em diversos projetos ao longo da vida, como o seu sonho de aprender inglês.

Mesmo com o orçamento limitado da família, sobretudo após a morte do pai, os esforços pela educação das crianças sempre estiveram em primeiro lugar. A mãe, para garantir que Malaquias realizasse seu sonho, chegou a dormir em uma fila para conseguir vaga em um curso de idiomas gratuito da região. Anos mais tarde, foi graças a isso que ela conseguiu seu primeiro emprego e pôde vislumbrar uma educação em outras fronteiras.

Embora tivesse tomado gosto pelos idiomas, sua verdadeira aspiração estava em um amor de infância. O que começou como uma brincadeira com pincéis virou vocação e fonte de renda. No ano de vestibular, Malaquias até cogitou se inscrever no curso de Letras, mas a paixão pela arte falou mais alto. Aos 18 anos, foi aprovada no curso de Artes Plásticas da Universidade Federal de Uberlândia. Foi o início não só da sua trajetória acadêmica, mas também da sua relação com a cidade, onde vive até hoje.

Ainda na graduação, sua história no serviço público começa. Em 2003, ela passa a atuar como educadora infantil da rede pública. No entanto, apenas três anos depois de começar a dar aula, ela interrompe sua vida no Brasil para ir em busca de uma oportunidade única: uma bolsa de estágio no Museu e Galeria de Arte The Duldig Studio, na Austrália.

Após terminar o estágio e formar-se na graduação, ela retorna em 2009 como professora de Artes Visuais do estado de Minas Gerais, atuando em escolas federais e municipais nos anos seguintes. Concomitantemente com a carreira como educadora, foi contemplada pela Lei Rouanet e pôde realizar residência artística na Itália, Sérvia e Chipre. Os estudos seguiram a todo vapor e posteriormente ela fez uma pós em História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Sua rotina como professora e artista plástica estava estável até que em 2016 um episódio muda completamente sua trajetória: um aluno da sua turma do 9º ano comete suicídio.

Flaviane Malaquias percebe, a partir de então, que o seu trabalho pode ser um instrumento para evitar que tragédias como essas ocorram. Inicia no colégio o projeto ‘Direitos Humanos – uma questão do mundo, uma questão do Brasil’, que estimula os alunos a desenharem sobre temas como identidade e respeito ao próximo. O resultado ultrapassou as fronteiras da instituição e tornou-se parte de um grande intercâmbio cultural criado por ela. Em uma parceria com escolas dos EUA, Canadá, Eslovênia, Colômbia, Camarões e campos de refugiados na Síria, os desenhos foram trocados entre estudantes ao redor do mundo, promovendo um debate global sobre diversidade e combate ao preconceito. O sucesso da proposta foi tão grande que virou a tese de mestrado de Malaquias. O dinheiro que ela recebia com a bolsa Capes passou a custear os gastos do projeto. Não demorou para que os desenhos ganhassem exposições dentro e até fora do país.

Em paralelo a este trabalho, a professora criou também o projeto artístico ‘Setembro com Van Gogh – sim à vida, não ao suicídio’, como uma forma de acolher alunos e evitar novas perdas na instituição. Foi feita uma instalação artística na escola, releitura da obra “Quarto em Arles”, de Van Gogh, reconstruída pelo olhar dos próprios estudantes. A escolha do artista considerou as especulações de que ele também teria cometido suicídio e os diálogos da sua obra com a temática. O objetivo era ressignificar a escola enquanto espaço artístico e permitir que os jovens expressassem suas angústias e anseios dentro das aulas. Cerca de 400 jovens foram impactados com a primeira edição e 300 com a segunda.

Mesmo com as dificuldades, as iniciativas de Flaviane Malaquias promoveram um novo olhar sobre a arte em toda a comunidade acadêmica. Se antes a disciplina era subestimada, a partir das transformações que a educadora provocou, uma nova relação com a arte nasceu nos alunos e funcionários da instituição. Um exemplo ilustrativo disso é a plantação de girassóis que foi feita na escola após o projeto ‘Setembro com Van Gogh’, uma marca do pintor. As sementes plantadas viraram mais que flores: tornaram-se a certeza de que a arte educa e pode salvar vidas.

Não educamos só para a arte, tentamos educar para a vida.

Flaviane Malaquias, Educação (2020)

Qual o papel dos pais na formação educacional de uma criança?

Meus pais, mesmo sendo pobres, entendiam a educação como o melhor caminho. Como diria o próprio Nelson Mandela, “a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. Eu atuo em duas realidades muito distintas, que são a escola municipal, mais centralizada, e a escola estadual, que é de uma região periférica da cidade. Percebo, principalmente na periferia, o quanto a falta dos pais faz a diferença na vida das crianças.

Quando você tem pais que conseguem te dar um incentivo, com certeza você será bem encaminhado. Mas a maioria não tem esse incentivo e às vezes buscam a referência que não tem em casa nos professores. Na periferia, a escola é entendida como um espaço social. Às vezes, a aula acaba e eles nem vão embora porque entendem que estão melhor na escola do que em casa.

Qual o maior desafio de se trabalhar com arte em escolas?

Não ter espaço adequado para realizar o trabalho. Às vezes surge uma sensação de inconveniência. A mudança de ambiente para a aula causa alguns transtornos.

Qual o maior desafio de se trabalhar com jovens do 9º ano?

Quando eles chegam no 9º ano, já estão desmotivados com arte e começam a criar limitações que alunos das séries anteriores não têm. Existe uma frustração e bloqueio. Eu tento criar aulas dinâmicas para haver participação. As turmas não têm nota, o que faz com que a disciplina seja subestimada e façam as atividades de todas as outras, menos a de Artes. Quando eu crio dinâmicas e movimentos com esses alunos, eles têm uma tendência a querer participar. No início dos projetos, muitos não se interessavam, mas chegavam aos poucos com o movimento, mesmo sabendo que o valor ali não era numérico.

O que você pensa sobre a disciplina de arte não conferir nota numérica?

Eu costumo dizer que na arte os valores são outros. A ordem dos valores altera o produto porque o produto é algo subjetivo. Eu acho que Artes deveria ter nota e em algumas escolas têm, justamente para que ela não seja tão subestimada. Infelizmente, ela ainda segue esse patamar de ser encarado como uma disciplina que não tem sentido. Muitos acham que a arte não serve pra nada porque ao longo da vida não foram educados para aquilo. Essa não educação para a arte, de certa forma, é geral no Brasil.

Muitos acham que a arte não serve pra nada porque ao longo da vida não foram educados para aquilo.

Eu tento ser uma professora bem-humorada. Vejo que alguns alunos têm medo do professor. Eu não quero ser inimiga, por isso busco sempre o diálogo. Coloco algumas perguntas no início da aula, faço diagrama de palavras. É quase que um espaço terapêutico.

Você teve contato com o aluno do caso de 2016?

Ele foi meu aluno no 6º e 7º ano. Foi meu aluno por pouco tempo no 9º ano porque fui afastada para realizar outro trabalho. Lembro que encontrei ele um dia antes, estava de cabeça baixa e não me cumprimentou. Ele não gostava muito da disciplina de Artes. Lembro que apareceu na escola careca, na época do Jogo da Baleia Azul, que levou muitos jovens ao suicídio. Ele disse que cortar o cabelo fazia parte do plano e sofreu muito bullying por isso.

Mas eu também perdi outro aluno, do último ano do ensino médio, que tinha acabado de se formar. Eu era muito próxima dele, um menino super divertido. Inclusive, sugeriu para a turma que eu fosse a professora homenageada da formatura.

O suicídio ainda é um tabu na sociedade. Como levantar esse debate com adolescentes?

Eu já tive uma fase depressiva, então quando percebo esses sinais, me aproximo. Nos vídeos do Van Gogh, trocamos o sensível. Percebo que eles se projetaram no artista. A intenção do projeto era mostrar que a ajuda existe, mas é uma carga pesada para o professor também.

De que forma o trabalho desenvolvido com seus alunos atinge os pais deles?

É uma pergunta interessante porque alguns pais comparecem na escola e falam “meu filho falou que a aula de Artes foi muito legal”. Quando eu montei essa instalação do Van Gogh no salão da escola, os pais iam com frequência na escola, por conta da rematrícula, e achavam aquilo o máximo.

No final dos projetos, eu faço uma avaliação em forma de registro, então eles escrevem o que teve de impacto e porque foi importante participar daquele projeto. A aula de Artes é muito curta, então eu só consigo ter um trabalho efetivo e significativo se ele tiver uma trajetória. Eu não acredito que os alunos que permanecem comigo por alguns anos não saiam tendo algo dentro deles para reverberar.

Como foi trabalhar com escolas de outros países?

Era algo que eu já desejava há muito tempo. Eu conheci outros educadores através de um site chamado InSEA – Sociedade Internacional de Arte Educadores. Percebi que ali tinham vários professores disponíveis para essa troca e comecei a tecer uma rede de contatos.

Percebo que alguns alunos chegam muito egoístas, então tentei pensar em algum tema relevante para todos. Falei com professores de outros países, que se entusiasmaram muito. Nos desenhos que chegaram da Síria, os alunos conseguiram perceber o quanto o outro é diferente. Cada professor escolheu um tema, e eu trabalhei a identidade brasileira advinda de três raças: indígena, africana e europeia, e o que deu essa mistura. Ali surgiram vários retratos. Negros de olhos azuis, pessoas com todos os tipos de cabelo. A turma no Canadá trabalhou com o tema de conflitos, na Eslovênia registrou refugiados, na Colômbia falaram sobre a fome, nos Estados Unidos sobre bem-estar e na Síria os registros foram sobre guerra. O professor de Camarões infelizmente não conseguiu me enviar o trabalho porque o país vivia um momento político muito difícil.

Para você, o que representa ter uma exposição internacional a partir de um trabalho desenvolvido com seus alunos?

Fizemos uma exposição no Sesc com esses desenhos e o professor da Eslovênia fez uma exposição com os nossos desenhos lá. O que eu achei mais legal foi o relato do professor sobre a surpresa dos alunos ao saberem que os desenhos eram brasileiros. Saber que ali tinha uma conexão entre crianças, isso gera uma memória afetiva também. Os desenhos foram feitos duas vezes. A primeira leva, enviamos para fora e a segunda foi feita para a exposição daqui. A primeira técnica foi nanquim raspado, onde você colore um papel com giz de cera e depois passa uma tinta preta, que é a do nanquim, e ela seca. Uma espécie de raspadinha. Para os trabalhos que ficaram aqui, fizemos os retratos do que eles consideravam um brasileiro. Esse segundo trabalho foi feito com tinta guache.

Por que você decidiu transformar o projeto Direitos Humanos em sua tese de mestrado?

Eu já tinha a ideia do projeto, fui aprovada no mestrado e acabei unindo o útil ao agradável. A escola foi super receptiva porque eu já tinha um espaço de respeito ali, que eu demorei cerca de três anos para construir. Os alunos começaram a ser aliados quando eu os convidei para montarem as exposições comigo, isso fazia com que eles respeitassem mais. Pedi permissão para a escola e um documento escrito para a assessoria pedagógica e eles acreditaram que era um projeto com potencial.

Qual a melhor parte de se trabalhar com adolescentes?

É interessante que as turmas que mais gosto de trabalhar são adolescentes. Talvez por uma experiência pessoal. Tive uma adolescência muito boa, fiz vínculos muito fortes com amigos na época que perdi meu pai e isso me ajudou muito, foi uma fase muito boa da minha vida. Talvez por isso eu me aproxime tanto dessa faixa etária.

A melhor parte, para mim, é tentar ajudá-los a encontrar um caminho e motivá-los, mesmo que tenham fatores que limitem os seus sonhos. Tento mostrar que talvez você demore para atingir seu objetivo, mas tenha um objetivo. Quando eu vejo os alunos da periferia que têm os professores como referência, enquanto profissional da arte, eu tento ajudar. Não educamos só para a arte, tentamos educar para a vida. Já trabalhei com alunos que diziam não ter nenhum objetivo, então às vezes eu pegava os momentos de aula para que eles escrevessem um plano.

Qual história mais te marcou ao longo desses anos?

Tenho alguns alunos que entraram na universidade e me dizem que eu fui a inspiração deles. Tenho um estagiário que foi meu aluno, três alunos nas Artes Visuais, um na Dança, um nas Artes Cênicas e um na Música.

Esse aluno do ensino médio que virou meu estagiário depois me deu um quadro. Na época, eu estava ensinando a técnica de desenho arquitetônico que se chama perspectiva. Ele fez o desenho no primeiro colegial. Quando chegou no terceiro, ele colocou na moldura e me deu de presente. Logo depois, entrou na universidade, no curso de Artes Visuais na Universidade Federal de Uberlândia, e hoje é meu estagiário.

O que representa para você ser professora no Brasil?

É um desafio muito grande. É quando pensamos nas condições que o estado nos oferece. Na minha trajetória, eu dependi de políticas públicas para estar onde estou. Talvez se eu não tivesse tido a oportunidade de fazer cursos gratuitos lá atrás eu não chegasse aqui. A questão é o investimento, aquele que não temos. Não temos muitos recursos e temos que nos desdobrar. Fazemos isso com amor na profissão. Eu poderia trabalhar de uma forma qualquer, mas eu tento ir além e trazer um pouco do que eu tenho para dentro de sala de aula, entendendo que talvez seja a única forma de acesso daquele aluno.

Tento ir além e trazer um pouco do que eu tenho para dentro de sala de aula, entendendo que talvez seja a única forma de acesso daquele aluno.

Quando eu penso em políticas públicas, me lembro da lei Rouanet. Eu fui contemplada por ela três vezes. Foi a partir dessas conexões com outros países que eu pensei em trazer essa competência intercultural para a sala de aula. Mas se não tivessem políticas públicas, eu não teria alcançado esses espaços e adquirido essas experiências.

Por que usar a bolsa da Capes para custear o projeto de Direitos Humanos?

Como eu continuei trabalhando ao mesmo tempo em uma escola, eu tinha um salário para sobreviver. Esse Mestrado é o Prof-Art, e a ideia é o desenvolvimento da educação básica. Entendi como um investimento. Como eu já sabia que isso demanda um desgaste porque nem sempre a escola tem material, eu usei a bolsa para trabalhar com o material que eu precisava. Era a vontade de fazer algo de qualidade. Já que essa era a intenção do mestrado, eu fiz. Se o professor tivesse uma remuneração digna para trabalhar em um único lugar, ele poderia desenvolver um trabalho com muito mais qualidade. Quando se tem qualidade de vida, você tem mais tempo e consegue executar um trabalho melhor.

O que você aprendeu de mais valioso com os seus alunos?

Aprendi muito a considerar cada um com sua singularidade. Pensar o ensino de Arte para valorizar essas singularidades. Entender o contexto de cada aluno é importante, porque às vezes ele se comporta de uma forma, mas existe um motivo para aquilo. Com os projetos, é importante pensar na questão de convivência.

O que você espera deixar de legado para os seus alunos?

Pensar na possibilidade da educação como um caminho para você vencer e se tornar um ser humano melhor. Os professores de Artes que têm as mesmas dificuldades que eu, espero que possam conseguir seu espaço na escola, já que a nossa disciplina é subestimada, mas que eles possam acreditar que a mudança é possível. Para isso, é importante repensar as práticas.

Qual o seu maior sonho hoje?

Outro dia eu estava caminhando e refletindo sobre isso. Durante a pandemia, aumentou muito a quantidade de moradores de rua. Passei na rua, vi um morador de rua e pensei o que poderia fazer. Me lembrei dos cursos que eu fazia em Uberaba e pensei em como seria bom ter um espaço para oferecer cursos para que pessoas pudessem se encontrar e se desenvolver profissionalmente.

Eu acredito muito no poder transformador da arte. Ser educado para o sensível e para o seu lado humano é a minha filosofia. A arte é um caminho que pode salvar vidas. Penso nisso porque a educação me transformou, é possível. Todo mundo tem competências e capacidade, só é preciso desenvolver.

Jornalismo: Julia Sena