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“Nenhum paciente é igual ao outro, cada um tem a sua história e precisamos honrar e respeitar cada uma delas.”
Equipe CUIDAR, Saúde (2020)

Equipe CUIDAR, Saúde (2020)

Conheça a Equipe do Programa CUIDAR, que há 20 anos tem ‘desospitalizado’ centenas de crianças no Hospital Infantil João Paulo II, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

A iniciativa permite que pacientes crônicos continuem seus tratamentos em casa, sem a necessidade de permanecerem internados por um tempo muito longo na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O projeto tornou-se um sucesso e hoje atende crianças de diversas regiões do estado. Para que isso fosse possível, muitas barreiras precisaram ser vencidas, como conta a coordenadora da equipe, a pediatra Carolina de Araújo Affonseca. De acordo com Affonseca, o projeto não foi planejado. Na época em que surgiu, a médica e muitos profissionais que hoje integram a equipe nem imaginavam fazer parte dessa história. No entanto, o desejo de tornar o tratamento domiciliar parte de uma iniciativa estruturada da instituição já vinha sendo construído há anos no Hospital Infantil João Paulo II.

Em 2000, foi criado um programa de atendimento domiciliar com foco em pacientes com problemas como pneumonia ou desnutrição, que facilitava o término do tratamento em casa. Dois anos depois, incluíram as crianças com doenças neuromusculares. Apesar da parceria com o programa domiciliar, as equipes de atendimento não atuavam de forma integrada. Por anos, o suporte envolveu apenas casos simples e poucos pacientes eram transferidos para suas residências. Em 2007, essa história começa a mudar. Com metade dos leitos ocupados por pacientes moradores do hospital, ou seja, dependentes de algum tipo de suporte avançado de vida, a rotatividade dos leitos ficou bastante comprometida. Como nem todos os espaços poderiam ser liberados, crianças com doenças agudas dificilmente conseguiam vagas na unidade.

Na época, o coordenador da UTI buscou uma solução para o caso e conversou com a equipe de atendimento domiciliar para viabilizar a inclusão de pacientes com doenças mais graves no programa. A princípio, a iniciativa começou com uma única criança. Em um trabalho conjunto entre profissionais de saúde, cuidadores e responsáveis, a equipe promoveu uma ampla capacitação para viabilizar a transferência para o ambiente residencial, além de oferecer todas as medicações e insumos que seriam usados em casa. Após dois anos dessa operação, em 2009 a paciente pôde voltar para casa, o que encorajou a equipe a incluir mais casos de gravidade similar no projeto.

Diferente do primeiro caso, as crianças incluídas posteriormente no programa foram apenas transferidas para uma unidade de internação. A diferença de uma unidade para outra é que a UTI é considerada uma ala prioritária do hospital e deve ser usada principalmente por pacientes que apresentam possibilidade de reversão do quadro, não por moradores com doenças crônicas. A mudança no protocolo inicial apenas transferiu o problema de lugar, criando uma unidade com crianças sem perspectivas de melhora e, sobretudo, de viverem suas infâncias fora do hospital. Quando Carolina Affonseca ingressa no Hospital Infantil João Paulo II em 2014, ainda como residente em Pediatria, a chave começa a virar.

Logo no início, a médica recebe a notícia de que todos os pacientes crônicos estavam reunidos e deveriam ser acompanhados por um único profissional, e não mais por médicos diferentes. Como as crianças moravam há algum tempo no local e não apresentavam nenhum tipo de melhora, poucos colegas sentiam-se estimulados a pegar seus casos. Foi justamente o desafio que motivou Affonseca a mudar a realidade daquelas crianças. Em pouco tempo, transformações inimagináveis começaram a acontecer. Em alguns casos, crianças que antes utilizavam sonda para se alimentarem passaram a comer pela boca. Em outros, elas chegaram a dispensar os aparelhos respiratórios provisoriamente e retornarem para suas casas.

Mas ainda existia um problema a ser resolvido: algumas crianças não podiam deixar a unidade pela ausência de suporte familiar. É quando Affonseca decide procurar a instituição filantrópica Lar e Fraternidade Maria de Nazaré (Laframn). Em 2016, o Hospital Infantil João Paulo II e a Laframn fecham uma parceria para que pacientes nessas condições também pudessem vislumbrar uma realidade diferente fora daqueles muros. Em troca do apoio oferecido pela Laframn, o hospital passou a ficar disponível para atender as crianças assistidas pela instituição a qualquer momento, estejam elas inclusas ou não no Programa CUIDAR. O projeto já transformou a vida de centenas de crianças, garantindo conforto físico e emocional para pacientes e familiares, além de uma maior rotatividade na UTI do hospital. Isso significa que mais pacientes podem ser atendidos, se recuperarem e, acima de tudo, voltarem a ser crianças.

A equipe do Programa CUIDAR é composta por uma série de profissionais das mais diferentes áreas. O núcleo, majoritariamente feminino, é representado por Carolina de Araújo Affonseca, Daniela Carolina Mendes do Valle, Sarah Drumond, Cibelle de Pinho Talma, Tereza Cristina Lara Mesquita, Camila Corrêa, Raquel Fonseca, Isabella Pimenta Milagres, Maria Vitória Mourão e Joseana Rodrigues dos Reis. Apesar das condições adversas, essas mulheres – e todos os profissionais do Hospital Infantil João Paulo II – têm garantido atendimento de excelência e injetado uma dose de amor e esperança em diversas famílias.

Nenhum paciente é igual ao outro, cada um tem a sua história e precisamos honrar e respeitar cada uma delas.

Equipe CUIDAR, Saúde 2020

Como é trabalhar diariamente com uma equipe de 10 mulheres?

Na verdade, a equipe é formada por quase 70 profissionais. A Pediatria é um universo predominantemente feminino, em todas as categorias: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e técnicos de enfermagem. A relação profissional é muito bacana com o grupo. Temos grupos de comprar roupa, manicure, massoterapia e falamos sobre nossos filhos, choramos e contamos muitas coisas umas para as outras.

Qual a parte mais difícil e mais legal de se trabalhar com crianças?

A parte mais legal vem da criança, que é aquela alegria, espontaneidade, sorriso, abraço, que te chama de tia e vem no colo. Quando a doença é curável, a criança se recupera muito rápido. A parte mais difícil, e que ficou mais claro depois do CUIDAR, é que quando se trabalha com criança que não tem capacidade de se comunicar adequadamente, e mesmo as que têm, nem sempre conseguimos fazer o que imaginamos que seria o melhor para essa criança. Trabalhamos com paralisia cerebral e essas crianças não falam. Quando tomamos uma decisão a respeito delas, ouvimos a opinião dos pais e nem sempre temos a sensação de que a decisão que eles estão tomando para aquela criança é a mais adequada, mas temos que ouvi-los e respeitá-los. A autonomia da criança é a questão mais difícil.

Principalmente nessa área de doenças complexas e ameaçadoras à vida, temos a questão da morte. É uma coisa natural e queremos que todo mundo cumpra um ciclo. Você cresce, vai para a escola, namora, tem alguma profissão na vida, realiza sonhos, constrói projetos e depois morre. Na criança, tudo é interrompido muito rápido, sem que ela tenha a oportunidade de vivenciar esse ciclo que valorizamos tanto. A maior dor é pela mãe. Não há dor maior do que perder um filho.

Como funciona o conceito de vaga zero?

Significa que não dependemos de uma vaga física para receber um paciente. Quando um paciente nosso sai, se eles tiverem algum problema, eles retornam ao nosso hospital, independente de ter vaga. Ele entra pelo pronto-socorro e a equipe define qual é a necessidade de cuidado daquele paciente naquele momento. Pode ser que ele precise da UTI, e aí ele será transferido. Me orgulho de dizer que há muito tempo não temos falta de vaga na UTI, isso nunca mais foi um problema no hospital. O CUIDAR tem 12 leitos de internação.

Que caso mais marcou a equipe ao longo dos últimos anos?

Temos a história da Fran, que nasceu com fraqueza muscular generalizada, não tinha força para respirar e sempre estava de olhos fechados por não ter força. Quando ela cresceu um pouco, aprendeu a abrir os olhos com as mãos. Ou ela ficava sentada ou abria os olhos, porque sentada ela usava as mãos para se segurar. Então, optamos por fazer uma cirurgia plástica no Hospital João XXIII.

A cirurgia foi um sucesso e ela passou a abrir os olhos com o mínimo de esforço, conseguiu ficar em pé e andar. Ela foi abandonada pela mãe desde que era bebê e foi uma das crianças que não conseguimos voltar para casa, o que a fez ficar no hospital conosco durante cinco anos. Hoje, ela mora em um abrigo a partir de uma parceria que fizemos e vai para a escola, brinca, engatinha, tem uma vida super legal e consegue ficar fora do equipamento de respiração por alguns minutos por dia.

E qual caso mais te marcou?

Essa história que vou contar sobre o Bidu e o João é, para mim, inesquecível. O Bidu é o cachorro do João. Existe um filme chamado A Cinco Passos de Você, que é sobre fibrose cística, uma doença crônica onde o pulmão fica duro, para de funcionar e os pacientes costumam morrer ainda na adolescência. O João tem fibrose cística, estava com 18 anos em um momento muito avançado da doença e entendemos que aquela era a última internação dele. Começamos a atuar com ele e perguntamos do que ele tinha saudade e gostava. Um dia, ele falou que estava com saudades do Bidu.

Combinamos com a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar que iríamos trazer o Bidu para o hospital. Conversamos com a dona de um pet shop e ela foi buscar o cachorro na casa dele. Quando chegou lá, ele tinha fugido. A mãe do João nos informou que ele sempre fazia isso, mas voltava para almoçar. Levaram então o Bidu para o pet shop, para tomar banho e ir para o hospital. Eu e mais uma médica fomos buscá-lo. Quando retornamos ao hospital com ele, o João chorou, abraçou o Bidu e nos disse que ele era o seu maior amigo.

Esse foi o último encontro dos dois, o João morreu em novembro de 2020. Diferente de todos os meninos que tiveram fibrose cística no hospital anteriormente, ele morreu dormindo e sedado. Na maior parte dos casos, a criança morre ajoelhada de tanta falta de ar. A passagem dele foi muito tranquila.

Qual o impacto dessas ações para a criança e seus familiares?

Nós sabemos da importância da alta para os pais, e para nós, esse é um pensar que vai muito além do paciente. As festas que acontecem para as crianças que voltam para casa, de certo modo, formam memórias de conforto para a família quando essa criança parte, e isso se perpetua para sempre.

A importância do nosso trabalho vai muito além do que fazemos para o paciente, mas o que fazemos pelas famílias.

Para além dos conhecimentos específicos na área de saúde, quais características são fundamentais para realizar trabalhos com crianças?

A primeira coisa, e mais importante, é gostar de trabalhar com criança. É desafiador entender o que um corpo que não fala está sentindo através da interpretação de outra pessoa. A segunda coisa é saber brincar, porque a criança se comunica muito através da brincadeira. Tem que ter esse encantamento pelo mundo da criança. É preciso saber ouvir. Quando trabalhamos com pessoas, precisamos saber ouvir o outro, porque é ele que sabe onde está a angústia, o medo e onde dói. É importante aprendermos a parar de julgar, interpretar o outro e ouvir para saber o que querem nos contar. A criança conta de várias formas com o comportamento. É preciso ter sensibilidade para ouvir além das palavras.

Quando trabalhamos com pessoas, precisamos saber ouvir o outro, porque é ele que sabe onde está a angústia, o medo e onde dói.

Quantas crianças já foram beneficiadas com o projeto?

Em torno de mil crianças nesses 20 anos. Atualmente, temos 38 crianças em internação domiciliar.

Como o projeto impactou os outros profissionais do hospital?

O cuidado paliativo ficava muito restrito nos leitos específicos. Com o tempo, os médicos nos pediam ajuda para cuidados mais difíceis e pacientes com sintomas mais difíceis. A grande semente dessa disseminação não foi o trabalho, porque o trabalho entre os médicos é muito solitário e dificilmente ele fica sabendo dos pacientes do colega ao lado. O que fazíamos na unidade do CUIDAR nem sempre era visto pelos colegas. Mas o residente que fica na unidade vê e passa a informação adiante, identificando os pacientes que poderiam se beneficiar do nosso projeto. Isso começou a acontecer nos últimos dois anos e meio e hoje somos acionados no hospital inteiro.

Qual o maior desafio de se trabalhar com saúde pública no Brasil?

Diante do que eu vi, vejo e do momento catastrófico que estamos vivendo agora, não acho que seja falta de dinheiro. Ele existe, mas não chega. Temos uma precariedade global de questões físicas. Temos uma obra há 15 anos no hospital, tivemos três ou quatro equipes diferentes e o problema não foi resolvido. É muito angustiante ver isso e eu não acredito que seja falta de dinheiro.

A casa se apresenta, na maioria das vezes, como um ambiente mais acolhedor para as crianças. Como transformar o hospital nesse ambiente para as crianças que passam por ele?

Nosso hospital não é acolhedor, o que o torna acolhedor são as pessoas e o que fazemos lá. Transformamos as enfermarias em oficina de pintura, massinha, sala de maquiagem e colocamos música. Temos uma equipe de palhaços que fazem um trabalho voluntário, mas o ambiente não é acolhedor. As enfermarias do CUIDAR são muito abafadas, sem ar condicionado.

A porta precisa ficar fechada, porque as crianças são colonizadas por bactérias hospitalares. Não são doentes, mas as bactérias moram nelas. Temos pânico do verão, porque as crianças ficam completamente molhadas de suor, descontrola a temperatura, pioram clinicamente por causa do calor e os equipamentos que as mantêm respirando dão problema e param de funcionar.

Temos que pegar ventilador e, ao invés de colocar para a criança, colocar na máquina, para que ela não pare de funcionar. Estou tentando colocar ar condicionado nas enfermarias e não consigo. Até hoje eles não têm enfermaria com esse equipamento. Quando soube que a equipe ganhou o Prêmio, a primeira coisa que eu pensei foi que nunca mais as minhas crianças iriam ficar molhando a cama de suor.

Existe algo nesse projeto que vocês ainda não conseguiram implementar?

Por conta do nosso trabalho, eu ganhei uma bolsa para cursar uma pós-graduação de cuidados paliativos no Sírio Libanês. Lá, eu ouvi pela primeira vez a palavra hospicy. Seria como uma hospedaria, uma casa com quartos grandes para que essas crianças, em fase final de vida, não precisassem morrer dentro do hospital. Seriam transferidas para esse lugar, cuidadas por uma equipe e ficar com quem fosse importante da família.

A casa tem uma cozinha, onde essas famílias se curam e se cuidam quando se encontram, seja passando um café ou fazendo um bolo de chocolate. Essas crianças podem ser levadas para um jardim, receber um vento no rosto, brincar no balanço ou entrar em uma piscina até que o momento delas cheguem. Desde que eu fiz o curso em 2017, essa semente foi plantada em mim.

Em cada morte que eu participo dentro do hospital, permitimos que entre quem o pai e a mãe quiserem, mas pegamos um biombo para dar o mínimo de privacidade para aquela família no momento de despedida. Mas é inevitável que outras famílias, que não estão no momento da despedida, sintam e vivam isso. Cada vez que uma criança morre naquele ambiente, a minha semente do hospicy é regada. Nós aprendemos a cuidar de quem está vindo para o mundo, mas não aprendemos a cuidar da morte, que é outro momento de passagem que tem que ter a mesma importância do primeiro. As pessoas geralmente morrem dentro de hospitais sozinhas, com barulho, frio, invadidas e com dor. É a dignidade no momento da partida.

Nós aprendemos a cuidar de quem está vindo para o mundo, mas não aprendemos a cuidar da morte, que é outro momento de passagem que tem que ter a mesma importância do primeiro.

O que os pacientes mais te ensinaram ao longo desse tempo de serviço público?

Me ensinaram muitas coisas. O mais significativo para mim é que cada um tem a sua história. Não existe receita de bolo. Não é porque o João tem a mesma doença da Maria que eles devem ser cuidados do mesmo jeito. O que eles mais me ensinaram foi a ouvir e honrar os valores, as necessidades, as histórias e as prioridades de forma absolutamente individualizada. Sem protocolo, regra ou organograma, porque nenhum paciente é igual ao outro. Cada um tem a sua história e precisamos honrar e respeitar cada uma delas.

Jornalismo: Julia Sena