Fernanda Bassani, Segurança Pública (2020)
Conheça a vencedora Fernanda Bassani, mestre em Psicologia Social, que mudou a perspectiva de dezenas de pessoas em uma penitenciária em Charqueadas, Rio Grande do Sul. Por meio da cultura hip hop, ela criou o projeto MC’s Para Paz. Nele, jovens se expressam através da arte, escrevendo e cantando músicas que representam seu cotidiano. O objetivo é traçar um novo destino para os detentos e aumentar suas chances de reinserção na sociedade. Mas, para a psicóloga, trabalhar dentro de um presídio nunca foi um plano.
Nascida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Bassani perdeu o pai antes mesmo de chegar ao mundo e foi criada pela mãe, professora de História e Sociologia. Cresceu uma jovem inquieta, curiosa e com forte senso de justiça. Durante o vestibular, pensou em cursar História, mas seguiu para a Psicologia a fim de se entender melhor. Na metade do curso, descobriu que a mãe estava com câncer. A partir de então, a vida virou de cabeça para baixo, atingindo seu ápice quando, no fim da graduação, ela faleceu.
Em meio a este momento conturbado, Bassani ainda precisava realizar um estágio obrigatório para concluir a graduação. Quando soube que todas as vagas daquele semestre haviam acabado, entrou em desespero e começou a chorar na secretaria da instituição. De longe, uma das responsáveis por encaminhar os alunos aos estágios observava a situação. Lembrou-se de um documento e pediu a outra funcionária que pegasse o papel guardado na gaveta. O documento havia sido esquecido porque tratava-se de um estágio que ninguém queria: em uma penitenciária feminina. Diante da necessidade, a jovem, mesmo surpresa, aceitou o desafio.
No início, faltava manejo para lidar com as situações ali dentro, que exigiam um olhar mais complexo. Mas, com o tempo, o interesse nasceu em Bassani, que passou a enxergar ali uma possibilidade de carreira. Enquanto ainda estava para concluir a graduação em Psicologia, soube que o concurso para a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) estava com edital aberto e fez a prova. Já formada, Bassani inicia sua trajetória no serviço público como psicóloga na Penitenciária Estadual do Jacuí. Nos primeiros anos de atividade, fez um diagnóstico da instituição e encontrou três grandes problemas: expansão das facções criminosas, dependência química e desinteresse dos detentos nas propostas de tratamento penal ofertadas.
Em paralelo, tornou-se voluntária da Central Única das Favelas (Cufa), onde pôde acessar e compreender o cotidiano daqueles jovens. Uniu-se à sua colega de trabalho, Maristela Mostardeiro, e juntas passaram a ouvir as músicas que vinham das celas. Um dia, as palavras ditas por um dos detentos ecoaram por todo o seu interior: “Tem gente com talento aqui, doutora, mas eles só vão sair das celas se a cadeia oferecer algo que faça sentido para eles”. Então, o jovem completa com uma frase que mudaria os rumos de Bassani para sempre: “O hip hop faz”. Inspirada e provocada a trazer um propósito àquelas pessoas, Bassani idealiza, em 2007, o projeto MC’s Para Paz.
O gênero musical tornou-se ferramenta educativa na penitenciária e passou a nortear encontros semanais com os grupos de detentos, agora aspirantes a MC’s. Os jovens estudavam a cultura hip hop e formação cidadã, como raça, paternidade, drogas e direitos humanos. Assim, escreviam rimas que projetavam suas emoções e revoltas. No início, as psicólogas tiveram dificuldades em convencer a direção do presídio, mediar os conflitos entre os internos e até mesmo vencer a aversão deles ao ambiente de sala de aula. Mas quando eles enxergaram na atividade uma chance de mudança, não demorou para que o projeto ganhasse forma. As primeiras turmas foram divididas em salas conforme a separação já feita por facções dentro da prisão, como forma de evitar conflitos. Com o avanço do projeto, pouco tempo depois os próprios internos sugeriram a integração dos grupos, para que se unissem em prol da arte.
Os MC’s Para Paz já realizaram shows dentro e até fora da penitenciária. A cada evento, os jovens se distanciavam da identidade de preso e se aproximavam da vontade de ser MC. O projeto ganhou apoio de outros segmentos da sociedade civil, como empresários locais, que doaram aparelhagens de som. Desde que a iniciativa teve início, já foram gravados dois CD’s e dois videoclipes. Também foram conquistados os prêmios Experiência Inovadora em Segurança Pública, do Ministério da Justiça, e Cultura e Saúde, do Ministério da Cultura. Em 2011, foi criada uma apostila de estudo oficial do MC’s Para Paz, que facilitou a replicação do trabalho em outras prisões.
Em 2015, Bassani assume o cargo de psicóloga da Polícia Civil do Rio Grande do Sul e se afasta do projeto. Mas seu legado como coordenadora do MC’s Para Paz permitiu a expansão do projeto para 10 instituições prisionais, transformando a realidade de cerca de 400 jovens. A psicóloga que foi levada ao sistema prisional por acaso garantiu a missão do hip hop: de ser uma potente ferramenta para lutar contra o sistema. Fernanda Bassani devolveu a centenas de jovens a chance de sonhar com o que quisessem, mas, principalmente, com a liberdade de uma vida longe das grades.
O percurso é punitivo, mas tem que ter um percurso de tratamento.
Como o seu ciclo social e familiar reagiu quando soube que você prestaria concurso para trabalhar em uma penitenciária?
Reagiram muito mal. Minha família ficou feliz por eu ter virado funcionária pública, mas quem trabalha em presídio é visto como um estranho, um lixeiro. O preso é visto como o lixo da sociedade, então se eu trabalho com eles, sou vista como lixeira. Eu recebo a mesma projeção que os presos. Quando chego na mesa de bar para contar minhas histórias, todos ficam com cara de pavor. As pessoas não conseguem enxergar no preso um ser humano, mas eu enxergava.
As pessoas não conseguem enxergar no preso um ser humano, mas eu enxergava.
Como foi o processo de negociação com a diretoria da casa para implementar o MC’s Para Paz?
Muito trabalhoso e delicado. Era um passo para frente e dois para trás. A direção era minimamente aberta. Eu negociei com seguranças e chefes de galerias. O principal nisso tudo é que tem que estar claro que vai ter resultado para os dois lados, isso ajuda a ter mais engajamento e diminuir as guerras de facções. Buscávamos trazer uma visibilidade positiva para a casa. Inclusive, inicialmente o projeto era Arte e Alma aprisionada, com gestores da Susep.
Como foi a reação dos detentos ao você, mulher, apresentar um projeto envolvendo a cultura hip hop?
No primeiro momento, quem apresentou o projeto foi a psicóloga Maristela Mostardeiro e eu. Quando chegamos, era um jogo. Você tem que ter uma postura firme e coerente, roupas adequadas e regras do que pode ou não fazer no grupo. Se um deles descumprisse as regras, ficaria na galeria por um mês pensando no que fez. Com o tempo, eles viram que se errassem, perderiam a única oportunidade de fazer aquilo.
Por que você acha que a iniciativa repercutiu de forma positiva em outras camadas da sociedade, como os empresários locais?
É muito difícil e arriscado realizar projeto de grupo em sistema penitenciário, uma epopeia. Por isso, eu considero fundamental trabalhar midiaticamente o que é feito pela imprensa da instituição. Nosso projeto foi extinguido várias vezes, mas sempre voltava. É importante fazer algo que os meninos querem, porque assim tudo fica mais fácil e ganha verdade. As pessoas não sabiam que preso pensa. Ali, mostramos o sujeito como alguém capaz de fazer poesia.
As pessoas não sabiam que preso pensa. Ali, mostramos o sujeito como alguém capaz de fazer poesia.
Qual história do projeto te marcou?
Uma vez um MC chegou no grupo e disse que o filho dele levou a capa do jornal para a escola dizendo que o pai era artista famoso. Outro participante do projeto saiu do sistema e procurou a Maristela pedindo trabalho. Ela lembrou de um conhecido na reciclagem de lixo. Ele não gostou no início, mas foi pensando na mãe. Se submeteu ao trabalho e em um ano se tornou sócio da reciclagem. Depois disso, ele criou um projeto chamado Reciclando Vidas.
Você conta na sua trajetória que precisou aprofundar os estudos sobre a cultura hip hop. Como você enxerga o hip hop hoje?
Enxergo o hip hop como uma ferramenta muito potente de empoderamento para jovens no Brasil. Nosso país é contestador e crítico, para que o rapper possa escrever uma letra ele precisa ler. O hip hop une grupos por várias bandeiras. Hoje, eu vejo o Emicida como um dos principais pensadores para entender a sociedade brasileira.
Após esse contato profundo com a cultura hip hop, você passou a ouvir artistas do gênero?
Sim. Eu gosto muito do Emicida, mas também escuto Baco Exú do Blues, Djonga, Rael, Mano Brown, Negra Jake, Iza, Karol Conka, RAPadura Xique-Chico, entre outros.
Como foi o processo de recuperar o interesse dos jovens pelo estudo?
Não é fácil. Os caras são muito bons, mas ‘bicho solto’. Lembro que uma vez cheguei na sala e os jovens estavam em pé em cima da mesa. Fiquei parada olhando e nada aconteceu. Quando chegou toda a aparelhagem de som, pedi para descerem e sentarem. Eles desceram, mas não sentaram. Falei que assim não íamos ter condições de fazer o projeto. Quando perguntei quantos tinham sido expulsos da escola, todos levantaram a mão. Eles são os excluídos, então o ambiente é propício para projetos desse tipo.
Por que os jovens decidiram unir as turmas de facções rivais e como foi esse início?
O projeto tinha um viés de apresentação. A possibilidade de subir ao palco fazia com que eles ficassem enlouquecidos. Mas era preciso ter uma base boa, beatbox e rima. Isso exige um grupo e fez com que passassem por cima das diferenças.
De que forma ter trabalhado no sistema prisional antes de ingressar na Polícia Civil influenciou no seu trabalho atual?
Foi muito bom ter estado dos dois lados, pude ver que não há mocinho ou bandido. Percebi que existe uma cultura da segurança pública, um território à parte. Existe a questão da masculinidade, da honra. Eu desconstruí completamente os estigmas e preconceitos, não tenho rancor nem mágoa. Entendo que violências e tragédias podem acontecer por conta de contingências.
Pra você, qual o maior problema do sistema prisional brasileiro e o que falta fazer para solucioná-lo?
É muito complicado. A instituição foi criada no século XVIII para não dar certo. Eu não acho que a gente vá conseguir viver sem prisões, mas quanto menor o presídio, melhor. O percurso é punitivo, mas tem que ter um percurso de tratamento.